Por Margarita Neves e Valdenia Brito Monteiro, em artigo enviado ao Blog de Jamildo O deplorável espetáculo público propiciado pelos congressistas no dia 17 de abril quando da votação de abertura do impeachment - sem entrar no mérito de quem era contra ou a favor da saída da Presidente - ficou registrado nas imagens transmitidas em cadeia nacional, questionando a qualificação dos nossos representantes.
Ali se evidenciava o retrato de um Brasil que estava longe de ser republicano.
A incivilidade e o desrespeito ao outro, até mesmo entre os seus pares, registraram a expressão de um país que goza de um elevado déficit democrático e de uma equivocada consciência cívica.
Presenciamos a nítida falta de entendimento do que representa a atuação de um parlamentar na esfera pública e o seu absoluto desconhecimento do que deveria e do que poderia ser dito em um ato solene que exigia prudência e respeito e que se transformou no prolongamento do que foi confundido com a representação de uma reunião informal onde a grande maioria referenciava os integrantes do seu núcleo familiar direto.
Não foram poucas as críticas de parte da comunidade internacional, os meios de comunicação não economizaram adjetivos pejorativos, desqualificando os congressistas já desgastados.
As virtudes republicanas foram jogadas no lixo da hipocrisia, acentuada pela falta de educação doméstica e o desrespeito ao espaço público – de um Brasil que sempre se pautou pelo estreitamento do público e o alargamento do privado – e onde os acontecimentos expressavam a dificuldade de entender o sentido do que estava sendo votado.
Nos bastidores, as condutas homofóbicas, racistas e sexistas também registravam a dificuldade de um país de conviver com a diferença e a diversidade.
Esta situação de vergonha nos faz refletir sobre o longo caminho que ainda temos que percorrer, pois longe também estamos de sair do estágio primeiro da cultura da violência, da subserviência, da submissão, da docilidade, do apadrinhamento, do banditismo, da troca de favores, das negociatas e do analfabetismo de espírito cívico.
Disso resulta tão complexo consolidar o Estado Democrático de Direito no Brasil.
Uma sociedade de corrupção endêmica e de transgressão às normas para obter o desejado, onde o cinismo é a nossa marca.
Estamos diante de um dos piores Congressos da história.
O poder dos grupos dos “3B”: o boi, a bala e a Bíblia que são representados com propriedade pelas oligarquias retrógradas.
Marilena Chauí afirma que na atualidade temos um Congresso de uma pauta regressiva, antidemocrática, de violação de todos os direitos que foram conquistados ao longo dos últimos quinze anos.
Não há país no mundo que tenha boa governabilidade diante de um Congresso medíocre tanto técnica como moralmente.
Resta-nos saber o significado da legitimidade para tal farsa, pois da totalidade dos deputados, mais da metade desses parlamentares respondem a processos judiciais, presidente da Casa incluído.
Recentemente, no dia 4 de maio, o STF, por meio de uma liminar, afastou o presidente da Câmara do seu cargo.
Curiosamente, esta medida tomou mais de cinco meses para ser expedida, o que evidencia o cunho político de que foi revestida a tramitação.
Euforia dos primeiros momentos à parte é preocupante esta interferência, entendendo que este indivíduo em qualquer país que respeitasse as práticas democráticas já teria sido cassado pelos seus homólogos.
Comprometimento?
Desinteresse?
Mediocridade?
Intimidação?
Mais uma vez, a Câmara é conivente com todos os atos ilícitos, imorais e antiéticos praticados pelos deputados investigados.
Os movimentos sociais precisam fortalecer seu poder de resistência e de autonomia, reconstruindo sua agenda emancipatória e seu protagonismo, com a finalidade de pautar uma reforma política em curto prazo.
Precisamos continuar reivindicando uma cultura de direitos humanos.
Uma educação fundamentada na vivência dos valores republicanos que o historiador José Murilo de Carvalho tão sabiamente sintetiza: “Ser republicano é crer na igualdade civil de todos, sem distinção de qualquer natureza. É rejeitar hierarquias e privilégios. É não perguntar: Você sabe com quem está falando? É responder: Quem você pensa que é? É crer na lei como garantia da liberdade. É saber que o Estado não é uma extensão da família, um clube de amigos, um grupo de companheiros. É repudiar práticas patrimonialistas, clientelistas, paternalistas, nepotistas, corporativistas. É acreditar que o Estado apenas administra os tributos pagos pelo contribuinte. É considerar que a administração eficiente e transparente do patrimônio público é dever do Estado e direito da sociedade. É não praticar nem solicitar jeitinhos, empenhos, favores, proteções”.
Uma cultura política não se fundamenta na disputa político-partidária que se manifesta no vencer ou no ser derrotado; tampouco se traduz no favorecimento de propinas em benefício de alguns próximos ao poder e em detrimento da maioria, nem na adoção de práticas corruptas.
Uma cultura política se consolida a partir de um projeto solidário que participa da construção de um bem coletivo, do entendimento do que representa a atuação do agente social na esfera pública.
Uma cultura política empodera este sujeito na mediação de conflitos e na formulação de políticas públicas de interesse social.
Foto: Wilson Dias/Agência Brasil Percebemos, também, que essa vergonha e essa indignação diante dos fatos relatados traduziam sentimentos de uma sociedade que nunca se preocupou com a esfera pública, com a necessidade de fiscalizar e controlar os representantes do Legislativo escolhidos pelo voto direto.
Estranha sensação de culpa, de abandono, de termos sido os responsáveis indiretos de todo esse assalto ao patrimônio público, da outorga e da concessão de uma confiança ingênua depositada em quem definitivamente banalizou a corrupção como prática regular na celebração de contratos em caráter de parcerias público-privadas.
Precisamos entender que a redução do déficit democrático é um processo de construção coletiva, resultado do comprometimento da sociedade civil com a esfera pública.
Estamos pagando caro o preço do abandono da cidadania e da prática de uma cultura de alienação política; em décadas anteriores a economia já havia registrado elevados índices de inflação, desemprego e taxas de juros, também como agora, principalmente por desacertos nos ajustes das contas públicas, evidenciando ainda, um descompasso entre os tempos jurídicos e os tempos políticos que em nada favorece a adoção de uma política fiscal e monetária de superação da crise que é, antes de tudo, moral e ética.
Repetidas vezes foi sugerida uma discussão ampla sobre a reforma política, porém, e apesar dos apelos incessantes, este assunto parece não preocupar àqueles que detêm interesses em que esse projeto seja prolongado indefinidamente.
Sem ela, não alcançaremos as conquistas sociais que permitirão a redução do déficit democrático e das desigualdades que se consolidam nas mais variadas manifestações de violência.
Amadurecimento político é substituir a tradicional utilização de mecanismos lúdicos, do tipo daqueles utilizados em campanhas publicitárias educativas no trânsito que insistem em docilizar e infantilizar a sociedade civil, por dispositivos que nos façam pensar, criticar e entender que estamos mais do que em tempo de construir uma consciência cívica frente ao conjunto de normas que temos que respeitar.
Resgatar a confiança e a credibilidade nas instituições é tarefa árdua; o esforço de construção dos valores morais e dos pilares da ética que sustentam a formação de um imaginário social nos fazem lembrar que, na ausência do exercício de uma razão crítica, estamos fadados à mediocridade e ao reconhecimento de que pouco ou nada podemos aportar em benefício da consolidação de um projeto de autonomia.
Que imaginário é esse que desprovido de crítica se fortalece apenas pelos comentários advindos dos meios de comunicação?
Na maioria das vezes tendenciosa, partidária e desprovida de uma cultura renovadora de construção de um conhecimento emancipatório.
Repudiável, lamentável e desconfortável é poder constatar que vamos desconstruindo essa cultura kantiana que fortalecia a nossa confiança, credibilidade e parceria também junto à comunidade internacional.
Desgastados, ainda, estão os símbolos da bandeira e do hino nacional que evidenciam o nosso descaso e o descompromisso absoluto com um pacto social que viabilize o entendimento e o resgate da capacidade de aportar soluções inteligentes aos graves conflitos que arruínam o nosso Brasil.
Margarita Neves é professora universitária (Estácio e Católica)