Por Roberto Numeriano O cálculo político da prisão do ex-presidente Lula é delicado e complexo.
A justiça e o Direito da Casa-Grande precisam fazer uma análise cujas variáveis sociais, ideológicas e políticas são difíceis de mensurar como eventos.
E os maiorais da conspirata certamente já trocam suas ideias a respeito em encontros regados com vinhos e boa comida.
Esse negro fujão e ladino que resiste em voltar à sua condição de antigo assenzalado da miséria real de um Pernambuco de retirantes encarna, numa dimensão simbólica e real, a alma rebelde de quem, uma vez livre, jamais aceitará outra vez os ferros nos pulsos e tornozelos.
Mourejar e se findar numa cela de uma polícia transfigurada em capitã do mato neste grande engenho canavieiro que é o Brasil, não é, posso garantir, um cálculo do ex-escravo da Casa-Grande.
Prender e tornar Lula inelegível também não é uma alternativa do golpe de Estado parlamentar (claro, não se cogitará aqui uma “morte misteriosa” do ator principal, tampouco um suicídio supostamente triunfal). É uma necessidade obrigatória.
O jogo de poder entre os atores e dentro das instituições não será de soma zero.
E os movimentos seguintes ao afastamento, por parte da Câmara, Poder Executivo, STF, PGR e Operação Lava-Jato, demonstram que o justiçamento de Lula não á apenas provável, mas se anuncia breve como o golpe a galope que prepara a degola da presidente na pantomima a ser chancelada pela pompa oca do STF.
A dificuldade do cálculo reside, sobretudo, no fato de que as figuras de relevo histórico transcendem quaisquer esforços racionais para situá-la objetivamente em uma dada cena e condição (mesmo nos marcos de uma teoria política).
Figuras como Lula (assim como ocorre e ocorreu com Vargas) são capturadas pelas forças sociais, políticas e ideológicas de sua época, tornando-se, a um só tempo, causa e efeito dos fenômenos que elas próprias vivem como História em construção, viva.
Lula, assim como ocorre com Vargas, será lembrado pelas décadas vindouras, enquanto as instituições e os personagens direta e indiretamente envolvidos no golpe de Estado parlamentar serão apenas referidos como os eventos atuais já demonstram: golpistas usurpadores.
O “sim” vai ecoar no tempo histórico como infâmia e hipocrisia.
Não se prenderá um Lula como já se prendeu e se condenou José Dirceu, e vamos tocar a vida que amanhã é “dia de branco” no Palácio do Planalto.
Meter Lula num navio negreiro de Brasília, e depois exibi-lo para escárnio dos hipócritas e reacionários em Rede (Globo) Nacional certamente vai escancarar de vez a porteira do inferno pela qual já saíram algumas potestades malditas da vileza, da vingança e do ódio político e de classe que arreganham seus malefícios com exemplar cinismo.
As hostes da degradação política aguardam convulsionar o país nas ruas, depois de usurparem o poder. (E não imaginemos que haverá tropa suficiente para erguer troncos e pelourinhos Brasil afora, contra a onda de assenzalados dispostos a virar o país num quilombo).
Até agora, conspiradores e/ou golpistas, sob o rito de legalidades de posses supostamente legítimas, cheios de pompa, encenam no palco uma normalidade institucional que ruiu desde o horror daquele 27 de abril.
A Constituição de 1988 morreu ali na sua natureza conciliatória em face da velha luta de classes à brasileira.
E somente a má-fé farisaica, entremeada pela rabugice de tipos filisteus mistificando com suas frases feitas de Direito Constitucional, pretenderá defender que ainda vivemos numa democracia minimamente liberal.
Não me surpreendeu, por isso, o tíbio STF, por meio da ministra Rosa Weber, encaminhar solicitação à presidente Dilma para que ela explicasse o que quer dizer quando usa a palavra “golpe” nos seus discursos e entrevistas.
Não sei se a presidente vai responder.
Caso vá, tenho uma proposta: enviar à ministra uma cópia do Art. 5º da Carta Magna, a título de grande teste da tese que eu postulo acima.
O problema do cálculo complexo é que, embora os golpistas encenem seus ritos de passagem de um poder que apenas detém de fato, eles também sabem que o Estado democrático de Direito é, hoje, nos marcos institucionais do golpe de Estado parlamentar, uma quimera, uma grande farsa organizada que a dinâmica inercial da burocracia toca.
Ainda que os machos-alfa da Casa-Grande, sedentos do viagra do poder, encenem uma legitimidade que não possuem, alguém precisa abrir e fechar portas, acender e apagar as luzes da máquina do Estado.
Aqui, está, de fato, a questão central a reunir as referidas variáveis: uma grande parcela da opinião pública (e eu até arriscaria incluir aqueles inocentes úteis de boa-fé que embarcaram no mote do golpe do impeachment como uma vertente saneadora da corrupção) sente/sabe agora que há no poder um governo política e ideologicamente ilegítimo.
Como, depois das patifarias tonitruantes daquele Brasil do “sim”, desfechar o golpe fatal do golpe de Estado, que é justiçar Lula em praça pública, se não há mais (nem mesmo como aparência) um governo legítimo, nem legislativo legítimo, justamente porque a Constituição de 1988 foi vilipendiada pelos usurpadores?
Bastarão os capitães do mato para capturar o negro fujão?
As canetadas de juízes provinciais?
O abjeto Jornal Nacional da abjeta Rede Globo?
O STF tíbio?
A PGR com suas peças acusatórias diversionistas?
O fundamentalismo político-teocrático de mercadores da fé, supostamente cristão e evangélico?
A boa Ciência Política ensina que é necessário pensar os cenários políticos racionalmente, a partir de teorias robustas.
Contudo, o imponderável da alma joga com as dimensões do instinto de sobrevivência do ser político.
Diante disso, como sou um afiliado à corrente do realismo político, vejo com profunda preocupação o quadro político-ideológico permeado pela ruptura em curso da Constituição.
As potestades infernais já circulam livres por aí, cientes de que podem avançar ainda mais no seu crime de lesa-democracia.
Eu me preocupo não apenas com a forte possibilidade de o golpe de Estado sair do combate retórico para o enfrentamento nas ruas (e porões?), mas também com o oposto – ou seja, nada acontecer, e o golpe se consumar com a paz dos cemitérios (mesmo com o chacinamento político de Lula e da presidente Dilma).
Daquele enfrentamento aberto pode sair algo novo (para o mal ou para o bem).
No segundo caso, o que será demonstrado é a grandeza da nossa miséria política, moral, ideológica e social.
O mundo da Casa-Grande vencendo outra vez a Senzala, como em 1964.
Roberto Numeriano apresenta-se como jornalista, professor e pós-doutor em Ciência Política, autor dos livros “O que é Guerra” e “O que é Golpe de Estado” (este, em co-autoria com Mário Ferreira), pela Editora Brasiliense.
Tentou ser prefeito pelo PCB mas não se elegeu.