por Roberto Numeriano, em artigio enviado ao Blog Ao longo de minha vida de estudante, contei com bons professores.

Desde o antigo primário, até os cursos de pós-graduação, suas aulas eram não apenas o espaço e o tempo do aprendizado, mas o instante de minha transformação mesma como ser humano.

A professora Sônia Fell, os professores Waldeci Wanderley e Castim (cito-os in memorian), e tantos outros, foram educadores no sentido pleno da palavra: (re)criavam nos alunos a vida dos saberes.

A todos, minha gratidão para sempre.

Mas hoje escrevo este artigo (no fundo, uma carta, e daí o seu tom confessional) para me despedir de dois queridos mestres.

Não devo citá-los porque poderiam interpretar mal o sentido destes arrazoados nestes tempos onde a ideologia da velha direita não apenas cega a percepção isenta das coisas, mas, sobretudo, tornou-se virulenta, persecutória e passional.

Também não vou citá-los porque esta carta transcende os seus destinatários: é para todo e qualquer educador cuja alma não se deixa contaminar pelo medo, isolando-se no universo da mentira, do rancor e do egoísmo.

Queridos mestres, aprendi muitas coisas ao ouvi-los na graduação e nos cursos de mestrado e doutorado.

Um de vocês me disse que o bom jornalismo deve estar fundamentado no interesse público, e o pressuposto da defesa desse jornalismo é o registro da verdade com absoluta isenção.

A verdade é o valor soberano da comunicação ética e moral.

Não existem duas verdades sobre um fato.

Por isso mesmo, ao analisar e reportar eventos sociais e políticos não vamos nunca concluir por uma verdade que é “minha” e outra que é “sua”.

A verdade fundamental de um fenômeno, aquilo que lhe constitui a essência, vai, sempre, estar situada objetivamente no evento como história.

Não é possível fazer “ciência retórica” com a verdade, por meio de contorcionismos verbais do jornalismo ou alguma teoria política supostamente elegante.

Não fosse assim, as atuais narrativas neonazistas sobre o holocausto judeu poderiam ser também a expressão de uma verdade tornada contingente, datada e efêmera.

Ou seja, a “verdade” dos derrotados contra a verdade dos que sofreram o horror dos campos de concentração poderia sempre ser objeto de debate e consideração séria como hipótese verificável – afinal, transfigurada em algo ou numa coisa contingente, a verdade estaria em todo lugar e em lugar nenhum.

E não é por acaso que o pensamento reacionário / conservador tenta até hoje negar o genocídio dos judeus e dos armênios.

Mas não é preciso apelar ao trágico do sangue e da morte para demonstrar que a verdade não é relativa. (Aliás, a podridão e o banditismo da grande maioria dos ditos “homens públicos do país se explica já pelo relativismo ético da Casa-Grande parlamentar, na qual, a depender do alvo, o mesmo peso pode obter duas medidas diferentes e opostas).

A verdade pode ser apreendida na expressão das coisas e eventos como símbolo.

E, para desgraça do medo, também aqui a sua natureza absoluta se impõe.

Por isso, se um de vocês, um dia, me ensinou que é possível ser isento (na prática e teorização em ciência política e no exercício do jornalismo), embora seja muito improvável ser absolutamente neutro, eu assim acreditei porque confiava nas suas palavras, e depois a vida viva me provou exatamente isso.

A vida das ruas em mim e a minha vida nas ruas; e no trabalho, e no ensino, e na política, e nas relações pessoais.

Fiz a “prova dos nove” e o resultado se mostrou exato, meus velhos mestres.

E porque acredito ter aprendido as suas melhores lições; e porque sei que, de fato, só existe uma verdade no ser de cada um e das coisas, é que me espanto quando leio as mentiras que vocês, por esses dias, escrevem e defendem sobre o golpe de Estado travestido em impeachment.

E é horrível lê-los menos porque me chocam como cidadão e professor, além de jornalista e cientista político, mas sobretudo porque vocês, mestres queridos, traem a si próprio com cínico despudor.

Traem o que professaram em sala de aula; traem suas belas histórias individuais construídas em décadas.

Eu me pergunto, hoje, qual a natureza e a extensão do medo que certamente capturou-os para negar o real, negar os fatos, negar o criminoso e o crime constituintes do justiçamento covarde, por uma maioria de bandidos políticos, de uma mulher honrada que não cometeu nenhum ato lesivo ao país, em termos morais e/ou financeiros, que justificasse esse processo usurpador?

Que medo é esse a tentar justificar a mentira do impeachment?

O ódio ao PT?

O ódio a Lula?

O ódio de classe?

O sexismo enrustido do macho da Casa-Grande que não suporta uma mulher dirigindo os negócios de Estado e de governo da nação?

Só mesmo o ódio, irmão do medo, explica isso.

Pelo jeito, esse ódio os fez e faz pequenos como professores e cidadãos.

Esse ódio se afirma e se revela na pobreza de seus argumentos falaciosos; é causa e efeito da mentira que, acredito, vocês já devem ter começado a ler e ouvir nas narrativas “pacificadoras” (de fato, apassivadoras) das grandes corporações midiáticas, agora que esses tipos de rostos sombrios se instalaram ilegitimamente no poder.

Já perceberam que até o olhar desses usurpadores exibe uma indisfarçável vergonha?

Que eles próprios se sentem no íntimo usurpadores da verdade e do que é moral na política e no exercício do poder?

E se até o olhar dos golpistas, sob a máscara de seus rostos duros que pretendem simular honradez, revela a malignidade que lhe rói as almas como uma obsessão pelo poder a qualquer custo, por que vocês, queridos mestres, ainda mantêm silêncio?

Seria vergonha?

Se for o caso, posso lhes dizer que vergonha maior é trair a si mesmo.

E isto vocês já fizeram, irremediavelmente.

Meus mestres, vocês me ensinaram uma última lição nesta quadra da vida.

Ou duas.

Um professor pode ser brilhante ao falar em teoria sobre fenômenos sociais e políticos, mas, porque não reconhece a prática como critério da verdade, negar praticamente o que ensina; negar a realidade objetiva dos eventos que constituem uma história e a História.

Vivam com seus fantasmas do medo e do ódio, pois só mesmo a conjunção fatal desses antivalores, em suas almas, pode explicar porque tentaram mistificar e distorcer a realidade, emulando o chacinamento em curso.

Eu tenho que ir à luta.

Assim como escreveu o grande Carlos Marighella, não tenho tempo de ter medo, esse luxo dos bem-nascidos.

E jamais vou me render ao ódio.

Aquele abraço do ex-aluno Carlos Roberto Magalhães Numeriano.

Adeus, queridos mestres.