Por Roberto Numeriano, em artigo enviado ao Blog de Jamildo O conjunto dos últimos eventos do processo golpista poderia sugerir que o imponderável compõe a essência dos jogos de poder entre as instituições e os atores que fazem seus lances na deposição criminosa da presidente Dilma e a usurpação do Poder Executivo pelos derrotados de 2014.
Grande engano.
A decisão do Senado em dar seguimento ao golpe parlamentar (recusando a validade do ato do presidente da Câmara), foi um cálculo que corresponde aos movimentos pretéritos dos atores golpistas, que já nem estavam disfarçando as articulações para a divisão do butim da desonra.
O DEM, o PSDB, o PPS, o PP, todos em torno do regente dessa ópera bufa nefanda, o PMDB, são ninhos de sinistras serpentes profissionais do que há de mais danoso e atrasado na vida política do país: o desprezo genético por qualquer escrúpulo democrático e legal em face do Estado democrático de Direito.
A “virtude” dessa vanguarda do atraso é ser fiel às suas origens essenciais, pois cevados pela Casa-Grande e seu imaginário de opressão e ódio de classe.
E devemos reconhecer que são mestres na arte de encenar as falácias mais descaradas no horário nobre – claro, sempre narradas pelas máscaras das redes jornalísticas e “comentaristas” políticos.
O que o senador Renan decidiu, e depois confirmou a votação do impeachment no plenário, dia 12 de maio, está mais do que claro que foram apenas novos atos de uma escolha feita há meses pelos maiores beneficiários do crime.
Aliás, acaso fosse reiniciado o processo na Câmara, qualquer um poderia prever nova derrota, e com mais declarações de amor do abjeto Bolsonaro à tortura e aos torturadores de nefasta e infame memória (quem sabe, até, o deputado da tortura não propusesse aos seus pares golpistas inscrever o nome do infame Brilhante Ustra no livro de aço dos heróis brasileiros?).
O fato é que as lideranças desses partidos, em conluio com a OAB de matriz golpista (a genética de 1964 é forte no sangue da entidade), a FIESP e as grandes corporações midiáticas pensaram há meses, direta e indiretamente, a conspiração, para executá-la pelas mãos de uma maioria congressual corrompida moral e politicamente.
Daí não surpreender, na Câmara e no Senado, o escárnio e o desprezo dos golpistas em face da defesa da presidente.
A maioria dos “jurados” desse tribunal inquisitorial já tinha o veredito condenatório na ponta da língua, não importasse qual fosse a robustez dos argumentos da defesa.
O cálculo dos golpistas incluía, é claro, a deposição.
A questão da acusação basear-se numa fraude legal e moral era o menos importante.
O golpe do impeachment foi iniciado para realizar um justiçamento ideológico e político.
O golpe em curso entra agora em nova fase.
O vácuo de poder desfez-se com a assunção provisória de uma nova ordem político-ideológica (não por acaso, como é típico do golpe de Estado, oposta à anterior nas suas alianças e interesses estratégicos).
Mas esse poder habita uma zona cinza.
Para além do fato de seu representante nominal, “seu” Temer, não ter a legitimidade do voto soberano dos eleitores, a nova ordem política é por si mesma instável, em termos morais, políticos e ideológicos.
E, na política real, uma ordem precária prescinde (se não possui um líder galvanizador da vontade popular) de uma legitimidade calcada nos movimentos e entidades sociais / populares, além de uma classe média aderente.
Senão, vai fatalmente isolar-se numa burocracia de poder refratária aos consensos e tendencialmente repressiva à contestação e rebeldia dos adversários.
Tais peças, obviamente, a nova ordem não possui, nem possuirá.
Ora, por mais que Renan e “seu” Temer acertem suas diferenças internas ao PMDB, com vistas aos projetos de cada um para 2016 e 2018, o fato é que algumas escolhas dos atores do jogo real do poder já revelam a face ideológica do golpe.
Depois de cavalgarem, nos últimos três anos, o dorso reacionário (antipartido e antipolítico), o dorso classista (pelo viés da velha Casa-Grande contra a senzala), e o dorso ideológico (contra a “comunização bolivariana” do país) das manifestações, as lideranças derrotadas em 2014 perceberam o espaço político por onde poderiam conspirar.
Primeiro, trataram de sufocar a ação política do Executivo por dentro do parlamento (Câmara); concomitantemente, as redes jornalísticas martelaram o terror da crise econômica (por que será que a nova ordem pediu para ninguém mais falar em crise?); também ao mesmo tempo, ações judiciais e policiais fecharam o cerco sobre as principais lideranças do PT; por fim, levantaram a fraude acusatória contra a presidente, peça infame que terá seu devido lugar no lixo da história.
O mote discursivo foi o velho combate à corrupção.
Também o mesmo mote que levou Vargas ao suicídio e ao adiamento do golpe de Estado que veio em 1964.
Alguma “novidade nova”?
Os golpistas de 2016 queriam o “suicídio moral” de Dilma, com a renúncia, mas ela honrou a sua história e as grandes mulheres brasileiras, para desgraça dos “machos” da Casa-Grande movidos pelo viagra do poder.
Diante de tudo, o que me espanta nem é o silêncio ensurdecedor dos paneleiros das grandes varandas gourmet (poupo, aqui, aqueles batuqueiros de gastas tramontinas nos terraços de classe média, pois, em geral, são/foram inocentes uteis de boa-fé nesse crime de lesa-democracia).
O que me espanta é o acintoso cinismo hipócrita daqueles que negam a natureza golpista do processo de impeachment.
Se faltava a, por assim dizer, irrefutável “prova política e ideológica” do que é a essência de um golpe de Estado, estão aí seus novos ministros, caros torcedores da verde e amarela mercenária do Neymarketing e do 7x1.
Dentre os 21 nomes de “notáveis” do novo ministério, nove estão incursos na LavaJato, e agora possuem foro privilegiado (não vi nenhum juiz federal de província, militante da moral e dos bons costumes na política, tentar impedir a posse desses senhores da nova ordem e progresso.
Por que será?).
Mas, para não ir longe, desse grupo faz parte ainda Raul Jungmann, do PPS, novo ministro da Defesa, vulgo “Brutus” na lista da Odebrecht investigada pelo juiz Moro.
Também faz parte o senhor Mendonça, novo ministro da Educação, o mesmo que tentou acabar com o ProUni e a política de cotas nas universidades.
Golpe é isso.
Conspiração política se faz assim.
E é coisa para profissional.
A provável judicialização no STF vem aí.
Mas, pra ser sincero, diante da tibieza dessa corte, na qual um ministro diz publicamente a um jornalista, do alto do seu ódio reacionário ao PT: “— Ah, eles podem ir para o céu, o Papa ou o diabo!”, não podemos esperar isenção e neutralidade absolutas.
Assim como Papai Noel nunca existiu, peço meditar uma coisa deste calejado cidadão que vos escreve: no país do imaginário e do domínio da Casa-Grande, a Justiça e o Direito são um grande mal-entendido.
PS 1.
Estou no aguardo das próximas manifestações de grupos como o Movimento Brasil Livre e o Vem pra rua.
Tô dentro.
Me chamem para gritar contra a “corrupção”.
Só não vou vestir a camisa da seleção mercenária dos Neymarketings.
PS 2.
Também não vou bater panelas: é ridículo, mal-educado e atrapalha o sossego alheio.
PS 3.
Por fim, uma constatação: o PSB, que se lambuzou no golpe e enterrou de vez sua história, não ficou chupando o dedo porque viu “atraso” etc no novo governo.
Ficou fora porque, nos bastidores da sangrenta luta para amealhar o butim do golpe, a velha direita de Pernambuco (DEM, PSDB e PPS) impôs seus nomes e levou todas as indicações.
Trata-se da primeira derrota dos aprendizes de feiticeiros que o falecido Eduardo Campos deixou como “herança maldita”.