Por Roberto Numeriano O golpe a galope completou a terceira volta na pista, cavalgando o dragão da mentira, demagogia e arrivismo dos derrotados de 2014.

Depois do relatório e voto na famigerada “comissão” de cartas marcadas, dia 17 passado, no plenário de uma Câmara onde votaram dezenas de despudorados corruptos pró-impeachment (a começar pelo presidente da casa), o dragão do ódio cuspiu mais fogo do seu ódio e infâmia políticos.

A próxima volta na raia é no Senado, onde se supõe que os membros sejam menos afeitos aos horrores do vale-tudo que o golpismo instaurou, desnudando-se no que há de mais vil e venal na política pela simbologia de um vice-presidente da República receber à luz do dia vassalos usurpadores com cinismo exemplar.

A suposição é retórica, a esta altura.

O efeito-contágio, a par das negociatas em curso e às escâncaras (quando há um mandato vigente e seria exigido o respeito ao cargo e à pessoa do mandatário da nação), demonstra que os democratas e legalistas não devem esperar o “republicanismo senatorial”.

E não devem pelo fato de também existir naquela casa uma maioria golpista já nos termos de sua filiação político-ideológica.

Na prática, o processo político de qualquer golpe de Estado, uma vez iniciado, não tem fim até que a força golpista assuma o poder ou seja derrotada num contragolpe.

E as forças que aí estão (Rede Globo, empresariado paulista, derrotados do DEM e do PSDB, eleitores reacionários, inocentes úteis com boa ou má-fé etc), não vão recuar dessa aventura.

Mesmo porque já vislumbram empalmar o poder de Estado e de Governo, e se imaginam legalizados pelo espetáculo grotesco do voto canhestro de parlamentares majoritariamente corrompidos.

A questão fundamental é que em todo processo golpista há o momento do vácuo de poder político.

Ele começa a se instituir na medida em que as forças dirigentes (o chefe de governo e as lideranças políticas de ponta) não conseguem mais reunir as condições de responder política e socialmente ao ataque golpista – ainda que detenham o poder legal-institucional da máquina do Estado.

O processo de impeachment (já pela sua aparência de legalidade, em função de constar na carta magna de 1988), foi o meio encontrado pelos golpistas para esvaziar o poder político enfeixado no Executivo, emasculando-o com o cerco midiático das grandes redes (praticando seu antigo jornalismo venal e subversivo da verdade), a fim de mobilizar as camadas médias, as elites e as entidades reacionárias tradicionais (a OAB e a FIESP, por exemplo, de DNA’s institucionais golpistas).

O vácuo de poder se institui e expande a cada derrota do governo.

Mas esse vazio é funcional para os dois lados.

E ele desde já impõe, para o governo e as forças antigolpe em face dos golpistas, pensar e decidir as ações concretas nos próximos dias. Àqueles que me perguntam ou perguntaram o que a história dos golpes registra como ações de resistência e contragolpe, eu digo que o vácuo de poder não pode nem deve se expandir-se até se configurar como espaço limite de ruptura da ordem no poder, pois neste espaço a margem de manobra é mínima e os atores tendem a decidir seus atos sob dinâmicas sociais, políticas e ideológicas muito imponderáveis.

Por isso mesmo, aguardar a votação do Senado (certamente negativa) será apostar tudo num processo político já à partida fraudado e vicioso.

O vácuo de poder será expandido ao máximo quando o Senado abrir a nova sessão do quarto turno da eleição de 2014, para gozo da torcida verde e amarela da seleção mercenária, que perdeu no voto e estará no limiar de ganhar e vibrar no tapetão.

A próxima sessão do Senado marcará o ocaso do governo Dilma, pois, em caso de nova derrota, restará o recurso de judicializar o processo de uma fraude política genética no espaço do STF.

E o julgamento (como vai entrar no mérito da acusação que despertou a serpente do golpismo, o tal do “crime de responsabilidade”) não deixará de sofrer a influência da subjetividade político-ideológica dos ministros. (Há quem acredite que exista a pura isenção dos homens da toga e sua neutralidade técnica na interpretação e aplicação das leis.

Para o bem e para o mal, eu nunca acreditei nesse mito, tanto quanto sempre soube que Papai Noel não existe).

A aprovação do impeachment pelo Senado significará que o vácuo deixou de existir, pois uma ordem golpista assumirá o poder imediatamente.

E o golpe, então, iniciará a etapa de sua institucionalização, independentemente da variável “julgamento” no STF.

O que em breve vai restar ou já resta às forças antigolpe e legalistas é o que já se cogita nas redes sociais: um “OcupeCongresso” e um “OcupePlanalto”.

Seria algo radical, sim; mas há algo mais “radical”, imoral e ilegítimo do que dezenas de deputados notoriamente cleptomaníacos derrubarem um presidente da República em nome do combate à corrupção?

Somente a hipocrisia golpista tenta demonstrar que não há nada demais na aventura do golpe parlamentar.

O tempo tático da ação e o “como fazer” requerem uma fina articulação das forças legalistas e democráticas.

Acredito que a ideia das lideranças e forças político-sociais mais ativistas captou a natureza da luta em curso: para golpes de Estado de novo tipo (como este, de caráter parlamentar), o contragolpe democrático-popular deve ser igualmente de novo tipo: ocupar e resistir no ambiente onde o poder político material e simbolicamente se institui – no Legislativo e no Executivo.

Afora isso, tudo é apenas filosofia.

Ou inocência, como já se percebe na ilusão de alguns líderes petistas e autoridades do governo quanto ao processo no Senado.

Pode ser que alguém (hipocritamente, se golpista) esteja agora escandalizado com a hipótese de ocupar e resistir, mas o cálculo de um golpe e contragolpe pelos atores não se opera no reino da menina-moça Pollyanna.

Só o fato de a votação do impeachment ter ocorrido numa corte legislativa de uma maioria de filisteus, notórios deputados incursos (sob provas materiais inapeláveis) em graves crimes de corrupção (e foram dezenas deles votando pró-golpe), demonstra que o golpe é, no mínimo, uma ação de potenciais ou virtuais bandidos do colarinho branco derrubando o presidente da República.

Isso é moral?

Não há nenhuma base moral ou política que possa legitimar a “República do Tapetão”, fruto da traição, fraude e banditismo.

Não é crime resistir por meios legítimos ao criminoso.

Esta é a tese moral e política que, acredito, está no fundamento da resistência dos legalistas e democratas.

Se no governo as lideranças antigolpe ainda acreditam no processo do Senado ou numa vitória na eventual judicialização no STF, não deixa de ser um cálculo também legítimo para análise.

Mas as forças legalistas e democráticas, nas ruas e entidades, não estão obrigadas a sonhar feito Pollyanna: “Quem sabe faz a hora, não espera acontecer”, já escreveu e cantou um poeta, emblematicamente.

A variável “julgamento no STF” é o pior cenário para os legalistas e democratas, porque a) é imponderável calcular os votos dos ministros com razoável margem de certeza (sei apenas, desde já, como votará ou votaria o inexcedível ideólogo jurídico da direita, Gilmar Mendes); e b) uma vez derrotado na sua tese, o governo e o PT (bem como todos que resistem ao golpe parlamentar) perderão o discurso angular das forças antigolpe: não há crime de responsabilidade cometido pela presidente.

Ou seja, a sentença negativa do STF (ainda que controversa, sob vários pontos de vista) vai não apenas “legalizar” o golpe de Estado, mas sobretudo abrir caminho para sua institucionalização político-social e blindagem jurídica.

A história e a teoria política dos golpes de Estado também ensinam outra coisa: o tempo dos golpistas é diferente do tempo dos democratas e legalistas (sobretudo quando o golpe precisa seguir os prazos do parlamento, à guisa da legalidade de que busca se revestir).

O tempo do golpe parlamentar corre e se conta nos limites das forças que se batem no espaço do Legislativo.

O tempo das forças antigolpe corre e se conta no relógio das ruas (entidades sociais, sindicais, partidos legalistas, redes midiáticas de resistência etc).

No momento, a vantagem tática da iniciativa de ação política e social está nas mãos dos democratas e legalistas.

Mas um “relógio político” pode, de fato, travar o outro.

Acredito que se as forças legalistas e democráticas ficarem “chupando o dedo” nas próximas duas semanas, o relógio do contragolpe vai perder a hora de despertar uma resistência cuja natureza está além dos limites da institucionalidade vigente, na essência corrompida pelo próprio golpismo parlamentar.

Os golpistas estão na raia avançando com o seu “dragão da maldade”.

Se os “santos guerreiros” não querem correr riscos (resistindo com a mobilização social e política dos democratas e legalistas), é melhor nem tentar.

Quem golpeia as instituições está disposto a tudo, inclusive, uma vez no poder, conter pela violência das armas os grupos da resistência.

E quem quiser resistir deve entender que a luta, nesse instante, é um tudo ou nada. É essa, em essência, a história dos golpes de Estado: a assunção de uma ordem ilegítima, mesmo quando legalizada por expedientes escusos, no plano jurídico-parlamentar.

Candidato pelo PCB, a prefeito do Recife e governador, e a deputado federal pelo PSOL, Roberto Numeriano apresenta-se como jornalista e professor, doutor em Ciência Política pela UFPE, pós-doutor em Ciência Política pelo Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) e autor do livro O que é Golpe de Estado (em coautoria com Mário Ferreira, pela Editora Brasiliense).