Por Roberto Numeriano O maior e simbólico sinal de que a democracia brasileira pode ser classificada como precária, do ponto de vista de sua consolidação, é o fato de um conluio midiático e parlamentar, calcado num corte classista social conservador, tocar um processo de impeachment do chefe de Estado e do Governo a partir de uma Câmara Federal cujo presidente está incurso num julgamento do Conselho de Ética, e sobre o qual pesam e sobejam provas incriminatórias.
Este é um elemento do conjunto de ações golpistas que, progressivamente, nos últimos meses, vêm solapando as bases sempre frágeis do nosso Estado democrático de Direito.
Para quem vê a política a partir da superfície dos seus jogos de atores e instituições, engalfinhando-se pelo poder (quase sempre de modo pouco republicano), os próximos dias podem parecer decisivos do ponto de vista dos interesses de partidos e suas lideranças, de segmentos sociais classificáveis ideologicamente à direita ou à esquerda, da mobilização de entidades geneticamente golpistas (OAB e FIESP), ou da velha mídia reacionária (Rede Globo à frente), que discursa liberalmente nos seus editoriais, mas nas alcovas do poder gosta mesmo é do “amor ativo” do autoritarismo.
Seria simples, se assim fosse.
Se o golpe a galope avançar mais na raia dessa loucura que já está provocando, entre os brasileiros, divisão social e ressentimento político-ideológico, vamos apenas esticar a corda de um processo de ruptura na ordem democrática que, justamente por ser precária, vai repercutir para além dos jogos sujos e da mesquinhez de grupos de parlamentares que desonram a grande e nobre arte do fazer político.
As vitórias de Pirro observadas no canhestro e fútil relatório da Comissão, e depois no plenário da Comissão, podem se repetir no próximo domingo, e até no Senado, mas, pelo fato mesmo de ser de Pirro, apenas vão comprovar a falta de legitimidade de seu pressuposto maior: a acusação da ocorrência de crime de responsabilidade praticado pela presidente Dilma Roussef.
A repercussão do golpe em curso não será como no caso da derrubada de João Goulart, em 1964, pela traição de generais que desonraram a farda.
O golpe cruento dos militares, em conluio com as lideranças parlamentares e com o apoio de segmentos sociais conservadores, repercutiu a seguir como embate aberto (e ainda nas sombras) entre golpistas e resistentes.
O resultado temos aí, com feridas ainda abertas na memória dos desaparecidos e pela falsa anistia onde torturador e torturado foram interpretados, ao mesmo tempo, como vítimas.
Se o golpe se confirmar será pelo arbítrio, e agora arbítrio de novo tipo, pois pretensamente legitimado pelo parlamento, como no caso do golpe recente, no Paraguai.
A variável fundamental na derrubada da presidente Dilma, via golpe parlamentar, será o uso arbitrário, demagógico e instrumental do impeachment, calcado numa mentira, o que por si mesmo torna ilegítima (e, como efeito, torna ilegal) qualquer ordem política e social que se queira fundar – sobretudo quando pretende difundir uma imagem ética e moral.
O efeito desse golpe será muito pior do que a marca de sangue deixada por 1964.
A ruptura a ser provocada por esse golpe será como uma síndrome degenerativa no corpo social (nos termos da convivência entre as diferenças político-ideológicas), e progressivamente vai consolidar a divisão do país em dois grandes grupos que não vão se tolerar.
A marca genética desse golpe será a da ruptura político-ideológica, justamente o ambiente onde começam os extremismos de sangue e morte.
Há uma gigantesca tempestade escurecendo os ares da República.
Os golpistas parlamentares imaginam, na sua tolice e arrogância arbitrária, que a derrubada da presidente será algo simples.
Imaginam que o voto espúrio do ódio e da demagogia vai derrubar pela mentira um presidente eleito por mais de 50 milhões de votos.
Imaginam que os brasileiros democratas e legalistas vão simplesmente voltar para casa e ligar a TV para assistirem ao rescaldo do golpe comentado por esse tipo deletério e tosco, alcunha Bonner, da Rede Globo.
NÃO VAI TER GOLPE.
MAS, SE HOUVER, A REDE DO CONTRAGOLPE PODE SER A MAIOR E MELHOR TEMPESTADE POLÍTICA QUE JÁ VARREU ESTE PAÍS.
Roberto Numeriano é jornalista e professor, doutor em Ciência Política pela UFPE, pós-doutor em Ciência Política pelo Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) e autor do livro O que é Golpe de Estado (em co-autoria com Mário Ferreira, pela Editora Brasiliense).