Um golpe que não quer dizer o seu nome Por Roberto Numeriano O golpe de Estado em curso, com o típico viés jurídico dos novos golpes urdidos sob a pretensão da legalidade, começa a tomar contornos de um falso debate.

E não é ou será por acaso: já estamos vivendo a versão farsesca (modelo 2016), do golpe civil-militar modelo 1964, cruento e trágico.

A farsa está no fato de os golpistas buscarem o escudo da lei para legitimarem uma ação política que os inspira em termos político-ideológicos, e este movimento, a par de um fenômeno conhecido como judicialização da política, já é, em si mesmo, algo perigoso e fatal para o Estado democrático de Direito.

O falso debate que a mídia golpista já está difundindo nos jornalões e seus editoriais tortos (e pelos dígitos de articulistas sempre apressados em traduzir a “voz do dono”, com raríssimas e honrosas exceções), tenta demonstrar que o impeachment está previsto na lei, e, por isso mesmo, não é golpe. É como se dissessem que, pelo fato da lei prever julgamento para homicídio doloso ou culposo, no caso do homicídio ter sido culposo o réu não será apenado em nenhuma circunstância, e então podemos todos matar culposamente à vontade.

Em outras palavras, pelo fato do impeachment constar numa lei, ele estaria imune ao uso arbitrário e/ou instrumental por parte de um parlamento radicalizado ideologicamente.

A questão é que o impeachment é um julgamento em essência político, e começa na decisão de abrir o processo no parlamento.

Quem, ainda que radicalizado (seja inocente útil, nervosinho reacionário ou mesmo por má-fé ideológica), poderia dizer que o parlamentarismo não foi um golpe de Estado que transformou o presidente João Goulart num bibelô no Palácio do Planalto, enquanto Tancredo Neves assumia como primeiro-ministro do sistema parlamentarista que um Congresso Nacional votou para impedir o “comunismo” de assumir o poder?

Hoje, o objetivo, pelo que me parece, é tentar tirar do poder uma “comunista” que chegou lá pelo voto.

Hoje, tratar-se-á de uma deposição golpista da chefe de Estado e de Governo, sem o recurso do trabuco das quarteladas, mas com o uso, ainda que instrumental, da toga e da pena.

A decisão de usar uma lei (hoje, a do impeachment) ou criar uma lei casuística (ontem, instituindo o parlamentarismo), não remove o fato político-ideológico que inspira a ação ilegítima da atual Câmara Federal (no momento, tocada / liderada por uma maioria cujas credenciais, em termos de moralidade política e pública, é zero).

Em ambos os casos houve / há um golpe nos marcos da ordem legal, e o modelo 2016 já encena o ato com a presença de um novo ator, o Supremo Tribunal Federal, que até pode emprestar o legalismo (afinal, a sessão decisiva do Senado será presidida pelo presidente do STF), mas em nenhum caso a legitimidade política ao ato de afastar a presidente.

Diante do fato de inexistirem as vivandeiras golpistas na versão 1964 (a exemplo de um Carlos Lacerda atiçando os militares das Forças Armadas), o golpismo atual, enquanto traveste-se de verde e amarelo e grita seletivamente contra a corrupção, busca ser avalizado pelo STF para revestir de pretensa legalidade o golpe que não quer dizer o seu nome.

O golpismo envergonhado precisa de um crime e de um criminoso para ter sucesso na Câmara e no Senado.

Contudo, o STF possui prerrogativas e competência para impedir que tramite um processo sem sustentação fática / legal ou declarar a nulidade de eventual decretação de impeachment, caso não haja de fato um crime de responsabilidade.

A presidente Dilma está na alça de mira e é essa pretensa “criminosa”.

Até onde li sobre as acusações que fundamentariam a tese do pedido de impeachment (a prática de “pedaladas fiscais” ou a “renúncia fiscal” relativa à FIFA, como dois supostos exemplos de crime de responsabilidade), não há, para desgraça dos adeptos do “morolismo” e sua corte de moralistas, como sustentar em face da lei o libelo golpista da OAB e demais “achistas” da opinião pública conservadora (inspirada, em essência, pelo ódio anti-PT).

De fato, o Senado é uma instância soberana para decidir sobre se aprova ou recusa o impeachment, mas nem por isso será um juízo absoluto que impedirá a presidente de recorrer ao STF (se assim não fosse, teríamos o Poder Legislativo arrogando a si, de modo absoluto, o direito de interpretar uma lei sob a perspectiva criminal e julgar um réu sob a perspectiva política).

Aliás, se o Supremo, uma vez acionado, decidir-se por seguir “automaticamente” uma decisão pró-impeachment, recusando-se a analisar e julgar as alegadas provas que o ensejaram, restará golpeado não apenas o regime presidencialista na pessoa de sua chefe de Estado e de Governo, mas a própria Constituição Federal e, por extensão, o Estado democrático de Direito.

O ataque em curso é um tiro no escuro.

Caso o golpe tenha sucesso, vai ocorrer na sociedade uma fratura político-ideológica com repercussões maiores do que a ditadura militar.

Até porque variadas e imprevisíveis reações provavelmente ocorrerão.

Há elementos sociais classistas (o puro ódio de classe), ideológicos (as intimidações fascistas contra políticos e governantes, em ambientes públicos), criminais (as ameaças físicas dos conservadores àquelas pessoas que são parentes de juízes imparciais) e políticos (o uso do parlamento e da mídia como meios para o ataque e a desconstrução de pessoas e entidades), que demonstram desde já o possível desenho de uma sociedade nascida do golpe, do medo e do ódio.

Roberto Numeriano apresenta-se como pós-doutor em Ciência Política pelo Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) e autor do livro O que é Golpe de Estado (pela Brasiliense, em co-autoria com Mário Ferreira).