Por Jorge Alexandre Barbosa Neves, especial para o Blog de Jamildo Em todo o ordenamento jurídico brasileiro – tanto na Constituição Federal quanto na legislação ordinária – o Tribunal de Contas da União está claramente definido como um órgão de assessoria técnica do Congresso Nacional.
Ou seja, do ponto de vista legal, o TCU está submetido ao Congresso Nacional, não o inverso.
Não poderia ser diferente!
Em qualquer estado democrático de direito, o poder burocrático deve estar submetido ao poder democrático.
Todavia, na prática, com frequência as coisas não são bem assim e, por vezes, a chamad opinião pública chega a se posicionar contra esse princípio de ordenamento hierárquico fundamental ao funcionamento das democracias.
No caso do julgamento das contas da Presidência da República, compete ao Congresso Nacional fazê-lo (como está explicitado no próprio site do TCU na internet).
Assim sendo, parece estranha a reação indignada de boa parte da mídia e de alguns analistas e blogueiros o fato de que o Senador responsável pela análise e emissão de parecer referente às contas da Presidência da República tenha proposto seu voto contrário à conclusão recomendada pelo TCU.
Afinal, não há nada de excepcional nisso.
Nem juridicamente, nem politicamente.
De onde vem essa indignação, então?
Em um momento no qual o Congresso Nacional está tão enfraquecido, com os presidentes das duas casas legislativas denunciados pelo Ministério Público, devemos nos preocupar com o equilíbrio entre os poderes republicanos, tão fundamental para o regime democrático.
Ao extraordinário poder concedido hoje pela sociedade e pela administração pública aos órgãos de controle, como o TCU, soma-se o excessivo ativismo judiciário brasileiro, que já é bem conhecido e adequadamente criticado.
Todavia, seus críticos, de modo geral, parecem não perceber que ele é apenas parte de um problema maior: a absoluta e crescente primazia do poder burocrático sobre o poder democrático no Brasil!
O sociólogo alemão Max Weber, em seu extraordinário ensaio intitulado “Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruída”, ressaltou o enorme poder “natural” da burocracia nos estados modernos.
Ao mesmo tempo, porém, ele alertou para o grande risco que o poder burocrático poderia representar para a democracia, principalmente na observância de um forte desequilíbrio entre ele e o poder político advindo do voto popular.
A acentuada competência técnica das burocracias profissionais, conjugada ao acesso a informações estratégicas, as tornam naturalmente poderosas.
Para Weber, esse poder burocrático precisaria ser contrabalançado pelo poder democrático, de políticos profissionais cuja menor qualificação técnica – quando comparados com os burocratas – seria compensada pela capacidade de liderança política.
Essa liderança e o acesso às mesmas informações estratégicas tornariam os políticos profissionais o contraponto ao poder burocrático.
Ocorria que, na República de Weimar, vivia uma burocracia profissional, tanto civil quanto militar, das mais competentes, porém, ladeada por um “parlamento onde apenas se pronunciam arengas”.
A democracia de Weimar estava em risco e a história mostrou a todos o resultado.
Sabe-se bem hoje que há outras formas de controlar o poder burocrático, que não apenas a partir de um parlamento forte.
Curiosamente, Lênin, em seu trabalho intitulado “Que fazer?”, imaginou todo um mecanismo de controle da burocracia, mas, na prática, a antiga União Soviética se tornou um fenômeno histórico de supremacia do poder burocrático.
O fortalecimento de uma sociedade democrática costuma levar a uma pluralidade de mecanismos de controle do poder burocrático.
Em democracias jovens como a brasileira, todavia, não é incomum que esses mecanismos não estejam plenamente desenvolvidos.
Em tais condições, a coexistência de uma burocracia profissional forte de um lado com políticos profissionais enfraquecidos de outro representa grande perigo para o próprio desenvolvimento do regime democrático.
O Brasil é reconhecido hoje como um caso relativamente exitoso de desenvolvimento institucional do estado, ocupando uma posição de bastante destaque (junto ou logo abaixo de alguns poucos países) no cenário da América Latina, assumindo, com frequência, algumas das melhores posições nas análises produzidas por organismos internacionais e por pesquisadores acadêmicos.
A Constituição de 1988 e normatizações ordinárias posteriores reforçaram as bases para a estruturação de uma burocracia profissional bastante qualificada, com remunerações relativamente altas e níveis elevados de autonomia em várias esferas da administração pública e de órgãos dos diferentes poderes do estado.
Essa forte estrutura burocrática convive com um mundo de políticos profissionais com um declinante prestígio junto à sociedade.
Na América Latina como um todo, as ameaças à democracia costumam vir do caudilhismo, do personalismo ou de outras formas de autoritarismo.
Houve vários eventos nos quais “salvadores da pátria” se apresentaram e foram recebidos com entusiasmo.
Hoje, no Brasil, enfrenta-se uma nova ameaça à democracia.
Os salvadores da pátria não são indivíduos, mas instituições do estado (de certa forma, já vimos algo assim antes, afinal, a ditadura brasileira estabelecida a parir de 1964 teve um caráter menos personalista do que os das demais ditaduras do Cone Sul, com mandatos fixos e alternância do ditador de plantão; naquele momento, uma outra instituição assumiu o papel de “salvador da pátria”, as forças armadas – em particular o exército – papel hoje que muitos querem delegar a outras instituições do estado).
Essas instituições, porém, são constituídas de indivíduos municiados justamente pelo poder burocráticoidentificado por Weber.
O extraordinário poder exercido pela burocracia profissional do estado tende a ser amplificado em uma sociedade na qual, historicamente, sempre se observou “o primado do direito administrativo sobre o direito civil”, como foi bem ressaltado por Raymundo Faoro em “Os Donos do Poder”.
Esse domínio burocrático se revela na sua forma mais pura nos chamados “órgãos de controle”, mas encontra seu ápice hoje no Brasil em organizações do Judiciário e do Ministério Público.
O excessivo ativismo judiciário no Brasil já é suficientemente preocupante, mas se torna ainda mais inquietante quando se dá fora dos autos do processo.
A acelerada ascensão recente do prestígio do Judiciário e do Ministério Público junto à população – após o julgamento da Ação Penal 470 (o chamado “Mensalão do PT”) e das ações do Ministério Público Federal na Justiça Federal junto à chamada “Operação Lava Jato” e suas ramificações – parece ter estimulado Magistrados e Procuradores a dar novos passos na extrapolação de suas funções constitucionais.
Deveras preocupantes são as iniciativas recentes de ativismos legislativos.
Magistrados escrevendo artigos para jornal propondo reformas na legislação ou Procuradores tomando ações para propor Projetos de Lei de Iniciativa Popular estão longe de constituir atitudes que devam ser aceitas de forma passiva pela sociedade.
Magistrados e Procuradores do Ministério Público não são cidadãos comuns!
São servidores públicos com um extraordinário poder burocrático e com funções constitucionais bastante claras e às quais deveriam se restringir.
Juízes (e assemelhados), Procuradores e Promotores devem abdicar de ativismos políticos ou legislativos, em particular fora dos autos dos processos.
O ativismo legislativo de Magistrados e membros do Ministério Público cria mais um desequilíbrio entre os poderes da República, descalibrando o sistema de freios e contrapesos imaginado por Montesquieu.
Vivemos um novo e difícil desafio à nossa jovem democracia! * Jorge Alexandre é bacharel em Ciências Sociais e Mestre em Sociologia, ambos pela UFPE, Ph.D. em Sociologia pela Universidade de Wisconsin-Madison/EUA, Professor Associado de Sociologia da UFMG e Pesquisador Visitante na Universidade do Texas-Austin/EUA.