O inferno não são os outros Por Demétrio Magnoli Amanhã, tudo indica, os gregos dirão “Sim” à Europa –e, portanto, “Não” ao seu governo.
O resultado não solucionará os problemas da Grécia, nem ocultará o dilema de uma Europa imobilizada entre Cilas e Caríbdis, os penedos da economia (a união monetária) e da política (a soberania fiscal nacional).
Mas, ao menos, o “Sim” equivale à rejeição da narrativa de que o inferno são os outros.
O impulso humano de atribuir aos outros a responsabilidade pelos próprios fracassos ganhou uma duradoura encarnação política com a teoria leninista do imperialismo.
Nossa pobreza decorre da exploração promovida por gananciosos estrangeiros –numa casca de noz, eis a teoria do imperialismo.
Há anos, o Syriza e outros partidos da esquerda europeia culpam a Alemanha pelo incapacitante endividamento de seus países.
O rosto de Angela Merkel, acrescido de um bigode à la Hitler, tornou-se um clássico das manifestações antiausteridade na Europa.
O “Sim” dos gregos corresponde a um “Não” a essa conveniente mentira.
A teoria do imperialismo tem mil e uma utilidades.
Na África, sob o verniz do panafricanismo, funciona desde as independências como um toque de reunir em torno das elites nativas que controlam o poder estatal.
O colonialismo europeu figura como fonte de legitimação de regimes repressivos, excludentes e, em certos casos, cleptocráticos.
Na síntese de Mia Couto: “Os únicos culpados de nossos problemas devem ser procurados fora.
E nunca dentro.
Os poucos de dentro que são maus é porque são agentes dos de fora”.
O “Sim” grego sugere que não prosperou a lenda, difundida pelo Syriza, segundo a qual os governos europeus tomaram “a decisão política de fechar os bancos da Grécia”.
Na América Latina, a teoria do imperialismo cristalizou-se na forma do discurso antiamericano partilhado por caudilhos populistas e por uma esquerda presa à armadilha do nacionalismo.
Sob o regime castrista, o artefato serviu para identificar os dissidentes ao “inimigo externo” e qualificar a divergência como traição à pátria.
Sob o chavismo, justifica as prateleiras vazias, a inflação selvagem e o derretimento de uma economia petrolífera beneficiada por um longo ciclo de cotações recordistas do barril de petróleo. “Num momento de crise internacional, levantar uma CPI contra a Petrobras é ser pouco patriota”, pontificou o então presidente Lula nos idos de 2009.
No Brasil, a evocação do imperialismo funciona como linha de defesa da apropriação partidária das estatais.
O “Sim” grego é um “Não” a tudo isso.
A imagem icônica de Che Guevara adorna a sede do Syriza, em Atenas. “A Venezuela prova que havia coisas que pareciam impossíveis porque não se tentava.
O que acontece aqui é a demonstração de que existe alternativa”, exclamou Pablo Iglesias, líder do Podemos, novo partido esquerdista espanhol, numa entrevista concedida em 2013 a uma emissora chavista.
Desde a eclosão da crise do euro, articula-se uma esquerda europeia pós-comunista que bebe no chafariz da esquerda autoritária latino-americana.
O alvo dessas correntes é a União Europeia, um inimigo que compartilham com a direita nacionalista e xenófoba.
O “Sim” grego deve ser traduzido como um “Não” aos discursos escapistas que, nos dois polos do espectro político, ressuscitam antigos fantasmas.
A Grécia não é vítima da Alemanha, mas de si mesma.
Para se reerguer, alerta Dominique Strauss-Khan, ela precisa “confrontar a oligarquia, os interesses escusos e o Estado profundo” que solapam o orçamento público.
O “Sim” grego é um indício de que, finalmente, essa mensagem civilizatória escapa da garrafa onde a guardaram sucessivos governos –inclusive o do Syriza.
O “Sim” não é um selo de aprovação à austeridade eterna que ameaça o sonho europeu.
Mas é um “Não” ao muro mental que sobreviveu à queda do muro real.
Amanhã, brindemos ao “Sim”.