Por Gustavo Henrique de Brito Alves Freire “O advogado pouco vale nos tempos calmos; o seu grande papel é quando precisa arrostar o poder dos déspotas, apresentando perante os tribunais o caráter supremo dos povos livres”. (Rui Barbosa) Nunca é sem razão que os regimes abertamente ditatoriais, dentre as principais medidas postas em prática logo de testa, no afã de restabelecer a normalidade em quadras históricas de alguma inquietude, apressam-se em cercear a atuação dos advogados e querer modular a sua voz, restringindo a sua atuação, bem como intervindo nos veículos de comunicação.
O advogado, para além de um profissional liberal, é o primeiro magistrado de toda e qualquer causa e um agente de transformação social.
Ao trazer seu cliente às vistas do Judiciário, permite que se concretize a lógica fundamental do constitucionalismo moderno: a Justiça como gênero de primeiríssima necessidade.
Aos cuidados do advogado o indivíduo confia o seu patrimônio, resultado das economias de décadas, a guarda dos seus filhos, a sua sucessão, quando não a sua própria liberdade, e, mais, não raro, a sua vida.
Não se concebe, portanto, que a advocacia seja selecionada, entre os bons e os medianos, até os sofríveis, unicamente conforme as leis do mercado.
A própria lógica impõe se faça mais que isso.
Daí, no Brasil, o Exame de Ordem como exigência para o processo de habilitação como advogado, notadamente a partir do advento da Lei nº 8.906, de 1994, também conhecida como Estatuto da Advocacia e da OAB, tudo por inspiração do vetor fundamental do artigo 5º, inciso XIII, da Carta Constitucional Cidadã (princípio da liberdade de ofício, trabalho ou profissão).
Não bastassem todos os problemas que enfrentamos, inclusive, na política, força-se, ainda, o cidadão a ter de conviver com uma realidade catastrófica no tocante à qualidade do ensino jurídico e à formação dos futuros advogados, juízes, promotores e procuradores de Justiça, defensores públicos etc.
São mais faculdades de direito em funcionamento aqui do que no somatório do restante do mundo.
Uma multidão semestral incontável de bacharéis desejosos de inscrição na OAB, muitos apenas de olho noutras carreiras jurídicas.
E um mercado incapaz de absorver tanta gente.
Para completar, há um grande número de cursos preparatórios secundados pelas próprias Faculdades que direcionam a sua pedagogia para a “decoreba”, ou em miúdos, para passar no Exame de Ordem, no lugar de formar cabeças pensantes, juristas capazes de lidar com as complexidades do direito quando em prática, desde a elaboração de uma simples petição inicial às sustentações orais.
Daí a revolta e a perplexidade despertadas por qualquer proposta legislativa que vise extinguir o Exame de Ordem, sem que nada seja apresentado em sua substituição a ele, e, ainda, considerando que nenhuma outra carreira jurídica está imune a uma seleção pública criteriosa.
São reações que só se agigantam à medida em que se constata que, entre os que defendem o indefensável, o fim do Exame de Ordem, está ninguém menos do que o atual Presidente da Câmara dos Deputados, autor do PL nº 2.154/2011, recentemente desarquivado.
Conhecido adágio popular diz que não se pode culpar a janela pela existência da paisagem que ofende o olhar.
Dá-se exatamente isso com o Exame de Ordem e o ensino jurídico no País, hoje gravemente mercantilizado.
Só um dado para que se tenha ideia da realidade: entre 1997 e 2011, o número de cursos de Direito saltou de 200 para 1.100, a despeito dos protestos da OAB, considerando-se o fato de que cabe ao Ministério da Educação a última palavra sobre a decisão de abrir ou não um novo curso jurídico.
Não será o Exame, mais do que oportuno, mais do que conveniente, um imperativo lógico?
Lado outro, risível é o argumento de que o único propósito do Exame é gerar receita financeira para a OAB, que, dela, não presta contas.
A uma porque não existe, inclusive, em se tratando de seleções públicas, “almoço grátis”.
A duas porque são dezenas de pessoas mobilizadas, a cada edição do EOU, em dezenas de pólos espalhados em todas as regiões, o que, claro, possui custos.
A três porque, fosse arrecadatório o propósito da OAB com o Exame e se abriria de vez as porteiras, admitindo-se todos quantos concluintes de graduações em Direito, já que a cada um deles equivaleria uma inscrição.
Como advertido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 603.583/RS, há alguns anos, de nada adiantará que se queira colocar a tranca na porta depois de arrombada a fechadura.
Isto é: de nada adiantará que se acabe com o Exame e se delegue ao mercado o poder de separar o joio do trigo.
Quem perderá será sempre o cidadão.
E, com ele, o Estado de Direito.
Donde ressoa imperativa a rejeição ao PL nº 2.154/2011 e a todos os seus congêneres, dado o incalculável desserviço que com eles é prestado ao povo deste País, ainda tão sedento e faminto de uma tutela jurisdicional efetiva.
Gustavo Henrique de Brito Alves Freire é advogado militante, Conselheiro Seccional Titular da OAB/PE, Membro Julgador do seu Tribunal de Ética e Disciplina (2013/2015) e Membro Efetivo da Comissão de Exame de Ordem do Conselho Federal da OAB (2013/2015)