Por Gesner Oliveira, Fernando Marcato, Pedro Scazufca, no Valor Econômico Entre as discussões envolvidas na Operação Lava- Jato, uma delas chama atenção em especial.
Diz respeito à denúncia de que fornecedores do governo e de empresas estatais atuariam como cartel.
Cartel é uma daquelas palavras que possui uma definição técnica e usos leigos com diversas conotações.
Apenas a definição técnica vale e só ela pode ser considerada crime.
Cartel é um acordo entre empresas independentes atuantes em um mesmo mercado que combinam práticas comerciais, no sentido de limitar a competição, em prejuízo do consumidor: fixação de preços, divisão de mercado, limitação da oferta.
O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) condenou vários cartéis em diversos mercados, nas suas diferentes modalidades, compondo uma experiência robusta e técnica de investigação.
Os processos de cartel são tipicamente longos e dependem de farta produção de provas documentais, de evidências econômicas de sua operação e efeitos no mercado.
Esses elementos precisam ser irrefutáveis.
Para que o combate aos cartéis seja efetivo, é preciso assegurar um exame criterioso e estritamente técnico Na esfera leiga, há uma tendência de generalização do termo cartel. É comum que coincidência de práticas ou comportamentos por empresas concorrentes seja considerada “cartel”.
Fala-se, por exemplo, em “cartel” das empresas de telefonia, pelo simples fato de que são poucas e porque em seus serviços de callcenters todos falam mais ou menos a mesma coisa, ou porque os preços, planos e pacotes são muito parecidos, ou ainda, simplesmente porque se consideram os preços “muito caros” sem uma dimensão de sua estrutura de custos.
A coincidência ou proximidade de práticas pode levantar suspeita, mas não é prova de que decorre de conluio: ao contrário, pode ser fruto da interação competitiva e busca por cada uma das melhores práticas observadas no mercado.
Outra confusão constante é entre cartel e concentração de mercado, quando muitas vezes se usa também a expressão “clube”. É o que a técnica antitruste chama de “oligopólio”.
Por exemplo: há no Brasil mais de 500 indústrias farmacêuticas, mas 40% do mercado está nas mãos de oito laboratórios.
Embora existam 121 bancos no Brasil, quatro instituições privadas e duas públicas são dominantes.
Das 19 marcas de automóveis fabricadas no Brasil, quatro detêm 70% do mercado.
Os exemplos de concentração se repetem em diversos setores: bebidas, suco de laranja, carne.
Mas oligopólio não é infração à concorrência, muito menos crime.
A engenharia talvez seja um dos mercados mais pulverizados do mundo.
Bastam dois amigos engenheiros e nasce uma empreiteira.
Naturalmente, o espectro de empresas habilitadas a tocar uma obra está relacionado à complexidade do projeto.
A relação de construtoras em condições de fazer um metrô, uma hidrelétrica, uma usina nuclear é muito menor do que a de empresas capazes de pavimentar uma rua.
Quanto mais tecnologia e experiência o edital de licitação exigir, menor é o número de concorrentes.
No caso da Petrobras, poucas construtoras em atividade no país possuem competência técnica para construir uma refinaria ou uma plataforma de petróleo.
Quanto mais técnico o mercado e diferenciado o produto, mais difícil é encontrar um arranjo de cartelização.
O fato de haver poucas empresas participantes em um processo licitatório não é, por si só, prova suficiente de cartel.
Reflete em grande medida barreiras técnicas e de capital à entrada no mercado relevante.
Lembre-se, além disso, que, em vários segmentos, o poder de mercado está concentrado na Petrobras.
Para vários itens a estatal é a única compradora, algo que em economês é chamado de monopsônio.
Em muitos casos é a própria Petrobras que dita as condições comerciais.
As acusações levantadas devem ser minuciosamente apuradas e complementadas com outras evidências.
A literatura econômica oferece um conjunto de testes que podem ser aplicados para comprovar a plausibilidade de determinadas alegações, verificando sua racionalidade à luz dos efeitos provocados no mercado.
Para tanto, é necessário o respeito ao devido processo legal e à análise especializada das evidências disponíveis.
Sem um estudo técnico, as atuais investigações podem dar em nada; ou, o que é pior, o feitiço virar contra o feiticeiro.
Punições inapropriadas, redução de competidores e prejuízos à cadeia produtiva reduziriam a capacidade do setor de infraestrutura brasileiro de atender à demandas governamentais, além de contrariar os esforços dos últimos anos de o governo federal desenvolver um mercado nacional para atender ao crescimento da indústria do petróleo.
A atual situação oferece uma oportunidade preciosa de efetuar correções de rumo e melhorar a governança nos setores público e privado.
Mas para que isso seja possível e o combate aos cartéis seja efetivo, o primeiro passo é assegurar um exame criterioso e estritamente técnico nas investigações em curso.
Gesner Oliveira é ex-presidente do Cade, professor de Economia da EASP-FGV e sócio da GO Associados.
Fernando Marcato é professor da FGV-Direito SP e sócio da GO Associados.
Pedro Scazufca é mestre em economia pela FEA-USP e sócio da GO Associados.