Uma secessão brasileira Por Roberto Numeriano As maiores nações do mundo (Estados Unidos, Rússia, China, Alemanha, França e Inglaterra, por exemplo), viveram guerras civis e revoluções de extrema violência.
Uma das guerras civis mais conhecidas foi a chamada Guerra de Secessão, ocorrida nos Estados Unidos, entre 1861 e 1865, de caráter separatista ou secessionista, onde (num resumo muito geral) o sul escravocrata e agrário entrou em conflito com o norte industrial e abolicionista.
As eleições presidenciais de 2014 estão sendo disputadas nos termos de uma secessão ideológica entre o Norte e Nordeste, pró-Dilma, e o Sul e Sudeste, pró-Aécio, com a região Centro-Oeste dividindo seus votos quase meio a meio.
Todas as pesquisas de opinião demonstram esse quadro geral.
Trata-se, a rigor, de uma cristalização de opções político-ideológicas, fundamentadas nos interesses, conflitos e contradições intra e interclasses sociais.
O aspecto ideológico da disputa sempre existiu, ainda que certo discurso à direita tente dizer que direita e esquerda perderam valor explicativo com o fim da Guerra Fria. (Nada mais ideologicamente conservador do que negar as opções político-eleitorais também conformadas pelas ideologias).
O que está em causa, agora, e de modo politicamente mais radicalizado nos eleitores, é uma divisão que reflete, em essência, duas opções de projeto de nação que me parecem antagônicas e apenas pontualmente conciliáveis.
E aqui temos o grave perigo da secessão brasileira: o polo mais rico e desenvolvido é em geral refratário às agendas sociais e antissistêmicas, ao contrário do que ocorreu na secessão norte-americana.
Já o polo mais pobre e aqueles apenas recentemente egressos da pobreza (somado à classe média média) é majoritariamente pró-Dilma por motivos óbvios: até ontem não comiam decentemente e/ou não tinham perspectiva de progresso social e econômico, relegados ao destino da senzala.
Não por acaso, o corte de classe da opção eleitoral pró-Aécio demonstra que os brasileiros de maior renda salarial (classe média alta para cima) são, em grande maioria, regressivos (e agressivos) no que concerne às agendas de direitos sociais e econômicos que universalizaram o acesso ao lazer, à educação e ao trabalho de uma massa de milhões historicamente excluídos.
Nessas opções há fortes elementos de preconceito de classe, racismo e regionalismo. É algo (digo sem medo do exagero) francamente perigoso para a unidade do país como nação, dado que opera uma cisão na alma brasileira.
O perigo que identificamos é uma hipótese construída com base no histórico das lutas sociais daqueles povos citados.
Seja uma guerra civil ou uma revolução, na gênese dos seus conflitos está o esgarçamento dos laços (no Brasil, cada vez mais mínimos) da solidariedade social, da confiança nas pessoas e instituições, além da crença na política com espaço de mediação de interesses a partir do diálogo.
Não quero dizer que estamos à beira de uma guerra secessionista bélica (um “ideólogo” de direita, saudoso da Guerra Fria, pode aqui querer colocar chifre em cabeça de cavalo), mas temo, como cidadão e cientista político, que esta eleição cristalize os antagonismos históricos numa secessão ideológica (de fundo classista) que não vai dividir apenas as regiões, mas pode criar desconfiança, medo, irracionalidade política e ressentimento social entre as pessoas nos locais de trabalho, nas famílias, nas entidades públicas e privadas.
Esse quadro pode se constituir, com maior probabilidade, com a vitória de Aécio, por paradoxal que possa parecer tal hipótese.
Por instinto de sobrevivência “fabiana” (salve, grande Graciliano Ramos!), os espoliados sociais suportam muitas pancadas, sendo suas revoltas explosões revolucionárias depois de muitos anos de opressão / submissão.
Mas, uma vez no poder, após transições políticas não cruentas, esses mesmos espoliados não praticam a vendetta política e social.
Aí estão Lula e o PT, que fizeram três gestões mediando os interesses de capital e trabalho, numa costura política tensa e muitas vezes contraditória.
O mesmo não ocorre com as elites sociais acostumadas ao mando: uma vez de volta ao poder, tratam de esmagar e isolar social, politica e economicamente todos aqueles que são o objeto dos seus medos.
Se sempre os espoliados foram nada, porque devem ser vistos?
Assim presumo porque, historicamente, as classes de renda alta, uma vez assomando o poder de Estado, travam, cortam ou postergam políticas públicas inclusivas, redistributivas de renda (basta lembrar a era neoliberal, sobretudo as gestões FHC).
Suas elites são adoradoras do bezerro de ouro do Estado mínimo (desde que mínimo para os assalariados de baixa e média renda, e máximo para os que atrelam os interesses estatais aos interesses privados).
Sempre apostam que, uma vez invisível, a massa de pobres e excluídos será / deve ser sempre invisível.
Ocorre que esse Brasil humilhado e ofendido transpôs o umbral das senzalas oniscientes e onipresentes.
Se a máquina da secessão ideológica (integrada por essa oligarquia midiática que pratica a mais vil censura à liberdade de expressão e opinião, e cinicamente aponta como censor quem luta por uma comunicação social pública e democrática) conseguir iludir uma parcela deles e fazer Aécio vitorioso, esse Brasil do gueto vai exigir o que a velha direita nunca deu e nunca vai dar: mais direitos, mais inclusão, mais avanço social e econômico.
Ou seja, tudo o que a agenda das elites brasileiras sempre negou.
A secessão ideológica, por muitos anos latente no debate político, já é algo real, cristalizado na divisão do voto segundo as classes e segundo as regiões mais ricas ou mais pobres.
Em face disso, pela primeira vez na minha vida de político, temo profundamente que as ilusões do PSDB e de Aécio (após instalados em Brasília) transformem essa ruptura simbólica numa ruptura material, sem termo de mediação política.
Não seria improvável isso ocorrer: a gente das velhas senzalas do Nordeste e do Norte também já saiu da caverna de Platão.
Roberto Numeriano é pós-doutor em Ciência Política, professor, jornalista e membro do PSOL/PE.