Ruptura da ruptura Demétrio Magnoli, na Folha de São Paulo Morremos porque um dia Deus puniu nossa desobediente ousadia de buscar o conhecimento, tornando-nos humanos.

Eduardo Campos morreu em meio a uma trajetória política, mas, sobretudo, na hora crucial de um percurso de ruptura intelectual.

Na campanha ao Planalto, o neto de Miguel Arraes e antigo protegido de Lula tentava completar algo como uma libertação pessoal, definindo seu lugar na cena brasileira.

Um acaso trágico, ruptura súbita de uma ruptura progressiva, interrompeu a escritura do capítulo final da história. “Versão moderna de um coronel nordestino tradicional” –a síntese ambígua escolhida em 2012 pela “The Economist” para classificá-lo talvez servisse como uma fotografia banal, mas não captava o fluxo da vida.

O “coronel” cerca-se dos seus, distribuindo os destroços da coisa pública ao séquito dos “compadres”.

Campos, pelo contrário, distinguiu-se no governo de Pernambuco por um esforço persistente, nem sempre bem sucedido, para insular a máquina estatal dos interesses das camarilhas.

Quando seus restos mortais baixarem à sepultura de Arraes, será tão legítimo celebrar a ruptura quanto a continuidade.

Campos provou que o Bolsa Família não congela a política.

Dois anos depois de, com o respaldo de Lula, obter 83% dos votos na reeleição ao governo estadual, sua liderança catapultou Geraldo Júlio a um improvável triunfo na disputa municipal do Recife contra o candidato lulista.

Naquela hora, convenceu a si mesmo, e ao mundo político, de que já não precisava ser um apêndice do presidente de fato.

Ingrato, oportunista, traíra?

Os epítetos lançados pelo PT, até quarta-feira incorporados à campanha dilmista e ainda reverberados pelos “companheiros de viagem”, circulam na esfera da difamação.

Campos ambicionava o poder, como qualquer político, mas sua ruptura refletia divergências de princípio.

No Brasil, vezes demais, sacrificamos a clareza no altar dos afetos.

Um “lulismo sem Dilma”, como parecia propor o candidato Campos, não era uma narrativa política viável, mas um tributo pago pelo presente ao passado –e uma renúncia voluntária à crítica justa.

O fato, porém, é que o ex-ministro de Lula rejeitava a sujeição do interesse nacional à ideologia (“Nós não podemos ter diplomacia de partido.

Nós temos de ter uma diplomacia de país”), acreditava na meritocracia (“Eu fiz salário variável na educação, na saúde, na segurança pública”) e esboçava um desafio à partidocracia (“A nossa perspectiva é que os cargos comissionados, algo como metade deles, sejam exclusivos dos servidores de carreira”).

Aprender e evoluir não é trair.

Na sua ruptura, Campos pisou a fronteira do tabu ao concluir que os programas de transferência de renda devem funcionar como ponto de partida, não de chegada, e sugerir uma “política social 2.0”. “Vemos as filhas do Bolsa Família serem mães do Bolsa Família.

Vamos assistir a elas serem avós do Bolsa Família?”, indagou com uma coragem incomum entre os políticos.

O “ciclo da pobreza”, explicou, só será ultrapassado pela qualificação dos serviços universais de educação e saúde.

Ele não disse, nem precisaria, que os beneficiários políticos do “ciclo da pobreza” entrincheiraram o país no castelo da “política social 1.0”.

O “menino de Arraes”, na expressão cunhada por um rival em Pernambuco, pendurou o retrato do avô na parede, mas mordeu a maçã da desobediência, procurando uma trilha ainda não devassada.

Em sua campanha ao Planalto, martelo e pregos à mão, ainda hesitante, escolhia um lugar adequado para o retrato de Lula na galeria do passado.

Nessa tendência a se desviar encontram-se as fontes da saraivada de recriminações que lhe dirigiam as páginas de propaganda lulopetistas, apagadas às pressas logo depois da queda do Cessna PR-AFA.

Ruptura da ruptura, história incompleta.

Cada um pode imaginar seu final preferido.