Por Henrique Mariano*, A década de 1990 foi marcada por impactantes transformações na sociedade de consumo.

A primeira delas veio no dia 11 de setembro de 1990, com a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), Lei nº 8.070, inserindo o Brasil na vanguarda dos países com legislações de proteção e de defesa do consumidor, de ordem pública e de interesse social.

Com seu microssistema de normas, o CDC rompeu paradigmas e fez com que o mercado brasileiro atuasse sob novos princípios éticos empresariais, estimulando inclusive a livre concorrência entre os diversos agentes econômicos.

Por sua vez, em 1994, foi instituído pelo Governo Federal o Plano Real, estancando o galopante processo de hiperinflação existente à época, trazendo estabilidade econômica e monetária ao mercado brasileiro.

A conexão desses dois eventos, associado aos avanços legislativos posteriores, merecendo destaque a Lei nº 10.735 de 2003, denominado “pacote do microcrédito”, estimulou a bancarização para a população de baixa renda, fomentou a oferta de crédito por meio da destinação de parte dos recursos do recolhimento compulsório sobre os depósitos à vista e incentivou a formação de cooperativas de crédito de livre associação.

O conjunto dessas medidas legislativas indubitavelmente democratizou o acesso ao crédito que passou a ser entendido como conceito de micro finanças, em sentido mais amplo, principalmente com a bancarização das camadas sociais mais baixas da população, base da pirâmide social, e a concessão indistinta de crédito para o consumo.

Incluir uma grande massa de pessoas no sistema financeiro nacional passou a ser a tônica cardeal das políticas públicas de acesso ao crédito no período posterior a 2003.

A despeito de o Brasil ainda apresentar um número expressivo de cidadãos sem acesso a conta bancária, a quantidade dessas contas tem crescido mais do que a população.

Em face da manifesta facilidade de acesso aos bens de consumo, os consumidores desavisados, inebriados pelo insensato proselitismo governamental, encontram-se neste momento “falidos”.

O acesso ao crédito sem a necessária verificação da capacidade de reembolso dos consumidores/tomadores do crédito, atrelado à total escassez de campanha governamental responsável, educativa e esclarecedora dos encargos decorrentes e do presumível comprometimento da renda mensal familiar, gerou uma massa de milhões de consumidores superendividados, civilmente insolventes.

Como bem define a professora Cláudia Lima Marques “Define-se superendividamento como a impossibilidade global de o devedor, pessoa física consumidor, leigo e de boa-fé, pagar todas as suas dívidas atuais e futuras, excluídas as dívidas com o fisco, oriundas de delitos e de alimentos.“ O superendividamento representa, portanto, vicissitude social de grande magnitude, gerador de circunspectas patologias psíquicas e fonte de desestabilização do núcleo familiar.

A expansão incomensurável do aceso ao crédito e a facilitação de aquisição de produtos e serviços suscitou o comprometimento da renda familiar e pessoal, inviabilizando o sustento de aspectos básicos da condição de vida de milhares de consumidores de boa-fé.

Portanto, a criação de uma tutela estatal de proteção ao superendividado é urgente e vital.

O Projeto de Lei do Senado (PSL) nº 283, de 2012, vem com a nobre missão de aperfeiçoar a disciplina do crédito ao consumidor e dispor sobre a prevenção e tratamento do superendividamento.

Além de se constituir em proficiente iniciativa legislativa, o PLS nº 283/2012 conta com o contributo da Comissão de Juristas, cujos integrantes representam a gênese do CDC, são eles Antônio Herman Benjamin, Cláudia Lima Marques, Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe, Leonardo Bessa, dentre outros.

Sem qualquer demérito às importantes e inovadoras proposições legislativas previstas no PLS nº 283/2012, porquanto são todas verdadeiramente essenciais à defesa do consumidor hipossuficiente, há uma que merece, especialmente, a meu ver, destaque. É o inciso II, do § 2º, do Art. 37, que trata da Publicidade. “§ 2º É abusiva, dentre outras: II – a publicidade que, dentre outras, contenha apelo imperativo de consumo à criança, que seja capaz de promover forma de discriminação ou sentimento de inferioridade entre o público de crianças e adolescentes ou que empregue crianças ou adolescentes na condição de porta voz direto da mensagem de consumo”.

Vertente amplamente debatida frente às cadeias mundiais de suprimentos está o próprio consumo dentre os piores excessos trazidos pela globalização.

Sem dúvida, a globalização democratizou o acesso à informação.

Acaso essa fosse a sua única virtude, que não é, já denotaria sua relevância na vida das pessoas.

O público teen, por exemplo, consumidor entre 08 a 18 anos, é hoje conectado ao seu tempo e às pessoas com quem se relacionam, por causa da descentralização da informação.

Isso é benéfico e profícuo.

Em 2015, a previsão é que esse público consumidor seja constituído por 37,5 milhões de pessoas no Brasil.

Essa estatística, por si só, justifica o fascínio dos produtores de bens de consumo por esse público formado por crianças e adolescentes, como instrumento fomentador da cadeia consumo/produção/consumo.

Na maioria das vezes, o liame produtor/consumidor não é uma associação salutar, notadamente para o consumidor distraído e desinformado, assim entendido aquele desprovido de cognição crítica e seletiva frente às incomensuráveis publicidades a ele destinadas diuturnamente.

Nessa categoria, há atualmente milhares de brasileiros.

O público teen, sem dúvida, é presa fácil da publicidade abusiva, enganosa, sem identidade e massificada.

Padecendo as consequências funestas da coerção perniciosa dessa publicidade, estão os ascendentes, responsáveis legais ou financeiros desses jovens, que se sentem compelidos a suprir as demandas inesgotáveis de consumo dessa geração, semeando, muitas vezes, o superendividamento da pessoa natural e o conflito social entre os aprovisionados e aqueles sem poder de compra, que aliás representam a grande maioria da população.

Os recentes “rolezinhos” são exemplos claros desse desequilíbrio social.

O desiderato legislativo de reputar abusivo o apelo imperativo de consumo lançado pelos produtores de bens às crianças e aos adolescentes por certo contribuirá para formação de uma cultura responsável de acesso ao crédito, estimulando uma educação financeira congruente.

Ademais, espera-se, ainda, que a transformação normativa do CDC possa coadjuvar a transmutação da compreensão de muitos conceitos subjetivos deformados e presentemente absorvidos pelos jovens em face da publicidade massificada e antiética.

O ardor colossal pela novidade, força motriz do mercado de consumo, tem transformado as pessoas em indivíduos coisificados, equiparando-se a uma mercadoria, fortemente caracterizado pelo consumo em massa e pelo recurso desmedido ao crédito.

No poema Eu, etiqueta, de Carlos Drummond de Andrade, fica bem retratado, por exemplo, a questão do consumismo, que resulta na perda total ou parcial da identidade do indivíduo como pessoa humana, como cidadão, removendo-lhe valores humanos como a solidariedade e a ética social, essenciais à construção e à manutenção de uma sociedade sem diferenças econômicas e sociais abissais entre seus integrantes.

Assim dizia o grande poeta brasileiro: “Em minha calça está grudado um nome que não é meu de batismo ou de cartório.

Um nome estranho…Desde a cabeça ao bico dos sapatos, são mensagens, letras falantes, gritos visuais, ordens de uso, abuso, reincidências, costume, hábito, premência , indispensabilidade e faz de mim homem-anúncio-itinerante, escravo da matéria anunciada.

Estou, estou na moda. É doce andar na moda, ainda que a moda seja negar minha identidade, trocá-la por mil, açambarcando todas as marcas registradas, todos os logotipos do mercado …

Agora sou anúncio.

Ora vulgar, ora bizarro.” O Mestre Márcio Mello Casado convenientemente sobreleva “a busca da construção de uma sociedade livre, justa e solidária, dentro de uma sociedade de massas, de consumo incentivado e forçoso, aproxima-se da utopia, mas jamais pode deixar de ser a meta principal do Estado brasileiro”.

Mutatis mutandis, esse é o contributo que se espera do PLS nº 283/2012, quando da sua inserção no ordenamento jurídico vigente. *Henrique Mariano é advogado, Conselheiro Federal da OAB pelo estado de Pernambuco, membro da Academia Pernambucana de Letras Jurídicas, Presidente da Comissão Especial da Memória, Verdade e Justiça do Conselho Federal da OAB, Secretário Geral da Comissão da Memória e Verdade D.

Helder Câmara do Estado de Pernambuco e ex-presidente na OAB, seccional pernambucana, no triênio 2010/2012.