Por Pedro César Josephi* Este texto é uma atualização dos sentimentos esposados quando do início da luta em defesa da cidade nos primeiros questionamentos sobre a destinação do Cais José Estelita surgiram.

Impulsionado pelos megaeventos que acontecerão e pela difusão do consumismo de produtos e espaços exclusivos para um setor da sociedade que se pretende diferente de outro setor emergente (a midiática “nova classe média”), temos assistido, no Brasil, o pulsar de intervenções urbanísticas protagonizadas tanto pelo Poder Público quanto pelo grande capital imobiliário e neodesenvolvimentista (com a anuência, é claro, do próprio Estado).

No Recife não é diferente.

A Copa das Confederações e a preparação para a Copa do Mundo geraram drásticas intervenções urbanas, diretamente ligadas aos megaeventos, tais como construção de uma Arena e de vias, realocamento da malha rodoviária e do transporte coletivo; e também, indiretamente, como é o caso das remoções de comunidades (como o Loteamento São Francisco) inteiras, expulsão dos comerciantes, ambulantes e trabalhadores do comércio informal das ruas e da praia, e a retirada dos feirantes do entorno dos mercados públicos.

Ações tais sempre acompanhadas por violência e brutalidade estatal, e sem a apresentação de política pública alternativa para àquelas pessoas que perderam suas casas (no máximo, a inclusão delas no auxílio-moradia, pasmem, que não chega a R$ 160,00, além de irrisórias quantias indenizatórias – muitas ainda sub judice) e seus postos de trabalho (não só inexistem projetos de qualificação, como igualmente, não se tem destinação para acomodar estes trabalhadores/as).

Processos que são reflexos de um projeto de cidade em que não cabe a população pobre e trabalhadora, processos de higienização social que visam um “embelezamento” e elitização da área urbana do Recife, e que por vezes são “legitimados pela opinião pública” (opinião atinente a grande imprensa pernambucana, não raramente financiada pelas grandes construtoras e empreiteiras locais, e refletida por uma elite que consume este projeto de cidade elitista, com espaços públicos sendo privatizados para isto).

Portanto, incorreto dizer que Recife é uma cidade sem planejamento urbano, visto que ele ocorre, todavia elaborado pelo poder econômico local, qual seja, o grande mercado imobiliário, e assumido pelo Município e Estado como política oficial.

O espaço urbano é verdadeiramente “fatiado” na Prefeitura pelas construtoras e imobiliárias, que definem e repartem, entre elas, os locais de atuação (intervenção) de cada uma.

Decisões que acontecem nos grandes escritórios destas empresas e são aprovadas pela gestão municipal sem a devida participação popular (não realização de audiências públicas, aprovação sorrateira no Conselho de Desenvolvimento Urbano) e dos órgãos fiscalizadores, e sem os necessários estudos de impacto socioambiental (análise de como os empreendimentos reverberam na comunidade local e no meio ambiente, exigências do próprio Estatuto das Cidades).

Nesta esteira, apresenta-se o “Projeto Novo Recife”, um megaempreendimento imobiliário de luxo na área central do Recife e idealizado por um consórcio formado pelas principais construtoras e empreiteiras locais, quais sejam, Moura Dubeux, Queiroz Galvão, G.L.

Empreendimentos e Ara Empreendimentos.

O referido projeto visa à construção de 12 torres empresarias e residenciais em uma área antes pública e – propositalmente - abandonada durante anos (da União e que foi arrematada por este consórcio, leilão, inclusive questionado judicialmente, tanto pelo Ministério Público de Pernambuco quanto pelo Ministério Público Federal), no Cais José Estelita, a beira do Rio Capibaribe, e que liga o nobre Bairro de Boa Viagem ao centro da cidade.

O que não impede, por amor ao debate, a responsabilidade socioambiental do setor privado na destinação da área.

Assim, questionando a destinação imobiliária, a degradação ambiental, paisagística, histórica e arquitetônica do espaço, acontecem desde 2012 inúmeras manifestações que se denominaram “Ocupe Estelita” (influenciado pelas ocupações dos espaços públicos – praças e ruas, na Europa, em um movimento que reivindicava Democracia Real).

Nos “Ocupe Estelita”, ante a necessidade de se organizar aquela luta pontual e construir uma pauta política de resistência ao Projeto “Novo Recife” surgiu o grupo “Direitos Urbanos”, campo político plural e horizontal em que se deram as discussões sobre o Cais José Estelita, e em que, com o passar do tempo, desembocaram as diversas lutas urbanísticas em defesa da cidade e contra as intervenções imobiliárias e estatais violadoras dos direitos urbanos e humanos.

Na última quarta-feira (21/05), após controversa autorização do Poder Público Municipal, a construtora Moura Dubeux operava a demolição dos armazéns históricos no Cais José Estelita em plena madrugada.

Logo, várias pessoas correram para lá e impulsionaram corajosamente a resistência contra aquela medida, que posteriormente fora suspensa pela Justiça Federal e embargada pelo IPHAN.

A luta contra o Projeto “Novo Recife” desembocou em um acampamento que já dura 6 dias e consolida-se simbolicamente no Recife como uma luta contra hegemônica ao modelo de desenvolvimento urbano implementado pelo grande capital pernambucano e alicerçado pelo arcabouço estatal.

Luta que teve algumas vitórias e derrotas, ao longo deste tempo, mas que serve para nós cidadãos recifenses como um referencial de organicidade e possibilidade de intervenção direta em defesa da cidade e daqueles localizados na base da pirâmide social, trabalhadores e excluídos. É claro e evidente que a lógica do Novo Recife guarda conexão íntima com os processos de remoções dos moradores de Camaragibe, com a expulsão dos trabalhadores do comércio informal, com o processo de higienização social nas comunidades dos Coelhos e Coque, e com a ausência de participação popular no atual modelo de expansão do transporte público, isso porque esta é uma lógica excludente, galgada em relações assimétricas entre sociedade civil organizada/movimentos sociais e o grande capital/poder público, onde não há espaços republicanos e democráticos para discussão sobre os rumos da nossa cidade.

Neste contexto, a existência de uma demanda consumeirista, que motivou a construção das torres gêmeas no Recife Antigo e do Projeto “Novo Recife”, chega a assustar, em tempo que temos números alarmantes de déficit de moradia e moradias sub-humanas.

Isto só revela que ao contrário do que amplamente propagado pelas agências estatais, vivemos sim em uma situação de caos para a imensa maioria da população, que se vê excluída dos processos políticos da cidade, mas também alijada do próprio “consumo” de serviços e bens de qualidade.

Ou seja, é uma ilusão afirmar que Recife adentrou na era da “democratização do consumo”.

O que temos é cada vez mais o fomento aos espaços “exclusivos”, “primes”, “vips” (FanFest da FIFA), “alphavilles”, bolhas imobiliárias, financiadas em sua imensa maioria pelos Bancos Oficiais, o que cria a falsa ideia na população de que um dia terá acesso a este tipo de “qualidade”.

Neste tipo de desenvolvimento urbano, certamente, não terá.

Por fim, entendo que o acampamento do Ocupe Estelita é, na verdade, para além de um “simples ato”, um verdadeiro ponto de encontro de pessoas que reivindicam a participação popular nas decisões dos rumos da nossa cidade, que protagonizam a ocupação dos espaços públicos e que questionam bravamente os processos de elitização, higienização social e privatização do urbano, impulsionados pelo advento dos megaeventos que aqui aportam. * Advogado, mestrando em Direitos Humanos na Unicap e integrante da Frente de Luta pelo Transporte Público de Pernambuco