Por Roberto Numeriano Os saques e depredações ocorridos durante a greve da Polícia Militar e dos Bombeiros de Pernambuco, e a reação das entidades que protestam contra o início das obras do Projeto Novo Recife, no Cais José Estelita, são dois eventos que, aparentemente, não guardam relação de causa e efeito no tempo e no espaço da cidade do Recife.

E, no entanto, ambos os casos sugerem a falência ou bloqueio do diálogo político e social numa cidade polarizada ideologicamente, numa disputa de poder político e econômico em que os extremos parecem apostar em bases de poder que supõem reunir e possuir.

O que salta à vista, em qualquer um dos eventos, é o equilíbrio instável de um modelo de sociedade que, pelo fato de nunca de sido inclusivo, começa a bordejar o precipício.

Os saques, depredações e outros crimes já sinalizam, por si próprios, um estranho estado de anomia: temos cada vez mais leis, enquanto nos sentimos cada vez mais desprotegidos e destituídos de direitos.

Para além da crítica moral aos saqueadores (fáceis e rápidas, dado que as turbas, marginais ou não, são mais facilmente imputáveis do que sonegadores de colarinho branco), o que revela a instabilidade é a absoluta inadequação desse padrão socioeconômico que transforma a cidade num amálgama de guetos na qual, apenas aparentemente, todos estão juntos e misturados.

A violência marginal que transbordou dentro dos guetos sociais tornou-se visível pelo volume dos saques e do próprio alvo, mas ela sempre existiu e existe (na sua dimensão homicida e/ou latrocida) no cotidiano desses ambientes.

O debate e conflito em torno do Projeto Novo Recife é, nos termos da anomia social e política referida, da mesma natureza.

Temos aqui o quadro de uma disputa de um projeto de cidade que, no fundo, expressa a disputa fundamental sobre o tipo de sociedade que projetamos.

Para além das torres e dos impactos socioambientais naquela área (e noutras: os bairros da Madalena e da Torre estão, rigorosamente, sendo soterrados por arranha-céus, sem que o céu e as ruas sejam limites), é preciso discutir esse modelo social cujas leis, de um lado, são apenas o Direito positivado (mas inócuo socialmente) e, de outro lado, servem apenas para legalizar (sem legitimar) o poder do capital privado que concebe e executa aquela cidade de guetos.

No meio dessas bombas sociológicas e políticas simbolizadas pelas leis que, no fundo, não significam sequer a possibilidade de controle e ordem sociais (a não ser, em geral, para enquadrar o gueto revoltoso, marginal ou não), o que temos como evidência maior é um tipo de prática política malsã que explica o estágio da guerra atual.

Trata-se da morte da política como ciência e arte para o debate dos assuntos públicos, visto que foi capturada, já faz tempo, pelo poder econômico.

Uma morte anunciada desde o momento em que os podres poderes do dinheiro define candidatos e decide eleições.

A polarização observada no caso do Projeto Novo Recife é um sinal de que não é possível mediar nada se, já nas estruturas dos Executivos estaduais e municipais, o poder de agenda de empreiteiras e construtoras constitui o projeto e o modelo de gestão da cidade por parte de técnicos travestidos de prefeitos. (E não tenho dúvidas de que o prefeito do Recife não possui qualquer projeto de cidade na cabeça, a não ser que ele imagine esses retoques cosméticos básicos como exemplo de gestão moderna e algo “conceitual”).

De fato: o capital captura a agenda (pois, entre outras coisas, financia as campanhas políticas desses gerentes modernosos que jamais tocam no assunto Plano Diretor municipal), isola-se na sua autossuficiência, decide o modelo de cidade e, mais adiante, vai naturalmente bater-se contra grupos que resistem porque pensam outro modelo de cidade.

O fundamento de tudo isso é um só: ausente o diálogo político e o debate público, resta a sentença: “Manda quem pode, obedece quem tem juízo”.

O problema será quando o gueto pobre não suportar mais o próprio gueto e, sem precisar de greve policial, sair às ruas para criar com os outros guetos dissonantes um modelo de gestão cujo fundamento seja uma cidade para todos.

Todos juntos e misturados.

Roberto Numeriano é jornalista, professor, cientista político e pré-candidato do PSOL a deputado federal.