Por Rodrigo França - cientista político e sócio da RVD Estratégia Hoje (31/03), o golpe militar brasileiro completa cinquenta anos.

As diversas publicações referentes a essa data que se observam na mídia condenam, justamente, o regime que se estendeu de 1964 a 1985.

Comuns não apenas no Brasil, as críticas evidenciam a busca por um acerto de contas da democracia com o período ditatorial.

Na América Latina, esse período perdurou por um tempo consideravelmente longo e parece não ter sido sepultado de forma definitiva.

A dificuldade de buscar uma justiça efetiva em relação ao passado autoritário pode ser explicada mediante as condições históricas em que se deu o início de uma triste tradição nos países latino-americanos: a intervenção militar na política.

Cientista político, Peter H.

Smith oferece uma visão bastante elucidativa desse processo histórico, no livro “Democracy in Latin America” (sem tradução no Brasil).

Na passagem do século XIX para o X, predominavam na América Latina as chamadas “oligarquias competitivas”, regimes em que a elite dominante se utilizava de meios legais para restringir o sufrágio e garantir a elegibilidade exclusiva de seus candidatos.

Como essa elite geralmente era composta pelo setor economicamente mais abastado, a crise do modelo importação-exportação que a sustentava possibilitou o surgimento de um cenário político caótico, pois, à exceção da Igreja, as instituições civis eram fracas e incapazes de conferir ordem à sociedade.

As Forças Armadas se apresentaram, portanto, como uma alternativa supostamente adequada ao governo, visto que detinham os meios de autoridade suficientes para oferecer estabilidade política. À medida que as instituições militares se tornavam mais profissionalizadas, se intensificava uma auto-imagem de integridade moral e disciplina superiores em relação à sociedade civil.

Dessa forma, os militares se consideravam capazes de julgar convenientemente a existência de uma ameaça à pátria que tornasse justificável a intervenção.

De modo aparentemente paradoxal, a maioria dos civis apoiava tal intervenção, pois enxergava as Forças Armadas como uma instituição digna e disciplinada, capacitada a preservar a “honra” nacional em um contexto de caos político.

Eis a origem do suporte civil à intervenção militar na América Latina, que podia provir tanto das elites quanto das classes menos favorecidas.

Dava-se origem, respectivamente, a regimes “reacionários” (excludentes) ou “reformistas” (inclusivos), ambos autoritários, mas diferentes na forma.

O regime militar brasileiro (1964-85), por exemplo, se enquadrou no primeiro tipo; o primeiro governo peronista da Argentina (1946-55), no segundo.

O estilo reacionário, caracterizado pelo uso mais repressivo da força, predominou no continente.

Observa-se, portanto, que as intervenções militares latino-americanas ocorridas no século passado têm forte relação com a fragilidade institucional dos países, conferindo ao comportamento militar um caráter autônomo.

Tal autonomia, no entanto, é extremamente grave à estabilidade de uma democracia.

Setores da sociedade que apoiam um regime autoritário geralmente apresentam a estabilidade macroeconômica oriunda do tempo ditatorial e a maior segurança no meio civil como argumentos principais.

Além de duvidosas, essas garantias são consequências diretas da competência burocrática e administrativa do Estado que não dependem necessariamente do tipo de regime em vigor. É preciso reconhecer que, em países onde as Forças Armadas não estão completamente subordinadas às autoridades civis competentes, a democracia ou inexiste, ou é incompleta.

Infelizmente, o Brasil e o restante dos países latino-americanos ainda sofrem com a herança de transições a governos democráticos que não conseguiram obter esse controle de forma plena.