Por Noelia Brito, especial para o Blog Em nosso artigo da semana passada, denunciamos o descaso com que o Poder Judiciário brasileiro vinha tratando a situação das partes e profissionais com deficiências que necessitam utilizar o sistema processual eletrônico para ter pleno acesso à Justiça, o que, em si, já configurava flagrante descumprimento das normas constitucionais vigentes, desde que o Brasil se tornou signatário da Convenção de Nova Iorque.
A inconstitucionalidade e o desrespeito com o direito das pessoas deficientes, em especial aquelas com deficiência visual, foram referendados por uma decisão do Ministro Joaquim Barbosa, na condição de presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça.
Em nossos artigos anteriores – vale lembrar que em nosso primeiro artigo sobre o tema, quando falamos do papel das APAEs e tratamos do descaso dos governos estaduais e municipais em aparelhar escolas e treinar educadores para lidar com os alunos com necessidades especiais -, trouxemos dados ainda do Censo de 2000, para demonstrar a dimensão da exclusão que o descumprimento, seja pelo Poder Judiciário, seja pelo Poder Executivo, das políticas inclusivas, causava ao nosso povo.
Entretanto, analisando dados do Censo feito pelo IBGE, já em 2010, compreendemos que o problema se torna ainda mais grave, à medida que esmiuçamos esses dados, já que nada menos 24% da população brasileira tem pelo menos um tipo de deficiência, ou seja, algo em torno de 45,6 milhões de brasileiros são deficientes e, portanto, vítimas da falta de seriedade com que os Poderes da Nação têm tratado o importante tema da inclusão.
Escrevemos semana passada que estranhávamos a posição do Supremo Tribunal Federal, que por decisão de seu presidente impedia advogados cegos de trabalhar, sujeitando-os à humilhante condição de dependerem de terceiros para exercerem seu mister, já que o sistema de processo eletrônico não fora preparado pensando nas normas internacionais de acessibilidade.
A figura central da luta pela inclusão dos advogados cegos na militância jurídica foi e continua sendo a advogada fluminense Deborah Prates, que se viu impedida pela decisão do Ministro Barbosa, de trabalhar, pois numa decisão avessa à própria Constituição, não permitiu que Débora peticionasse em papel, enquanto o PJe não se adequasse às normas internacionais de acessibilidade.
Essa decisão do ministro Barbosa simbolizava, assim, uma “capitis diminutio”, não apenas para Deborah, mas para todos os demais profissionais que durante longos anos venceram os mais tortuosos percalços, para se tornarem, sejam advogados, sejam quaisquer outros profissionais que necessitem de acessibilidade para exercerem suas atividades.
Um verdadeiro retrocesso, numa seara onde o que se exige é sempre o avanço e tudo por simples egoísmo de mentes obtusas.
Felizmente, durante as férias do presidente do STF, coube ao vice-presidente, Ricardo Lewandowiski despachar o mandado de segurança MS 32.751, impetrado pela advogada fluminense, onde o vice-presidente do Supremo, no exercício da presidência reconheceu o descaminho por onde enveredara o STF, ao cercear o direito da advogada ao livre exercício da profissão, concedendo liminar no sentido de lhe permitir peticionar em papel: “Conforme narrado na inicial deste writ, o processo judicial eletrônico é totalmente inacessível às pessoas com deficiência visual, pois não foi elaborado com base nas normas internacionais de acessibilidade web.
Dessa forma, continuar a exigir das pessoas portadoras de necessidades especiais que busquem auxílio de terceiros para continuar a exercer a profissão de advogado afronta, à primeira vista, um dos principais fundamentos da Constituição de 1988, qual seja, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).
Além disso, tal postura viola o valor que permeia todo o texto constitucional que é a proteção e promoção das pessoas portadoras de necessidades especiais. (…) Assim, é de se ter em conta a obrigação de o Estado adotar medidas que visem a promover o acesso das pessoas portadoras de necessidades especiais aos sistemas e tecnologias da informação e comunicação, sobretudo de forma livre e independente, a fim de que possam exercer autonomamente sua atividade profissional.
Entendo, portanto, presentes a plausibilidade das alegações contidas na inicial e, também, o periculum in mora.
Isso porque a exigibilidade de peticionamento eletrônico como única forma de acesso ao Poder Judiciário, sem que os sistemas tenham sido elaborados com base nas normas internacionais de acessibilidade web, impede o livre exercício profissional da impetrante.
Isso posto, defiro o pedido liminar a fim de determinar ao CNJ que assegure à impetrante o direito de peticionar fisicamente em todos os órgãos do Poder Judiciário, a exemplo do que ocorre com os habeas corpus, até que o processo judicial eletrônico seja desenvolvido de acordo com os padrões internacionais de acessibilidade, sem prejuízo de melhor exame da questão pelo Relator sorteado.” Um Judiciário que dá as costas a 24% de seus potenciais usuários diz muito sobre si mesmo. É certo que dos 24% de brasileiros que, segundo o Censo de 2010, apresentam algum tipo de deficiência, não são todos deficientes visuais.
De acordo com o IBGE, no Brasil, os que não conseguem enxergar de modo algum são 528.624, os que têm grande dificuldade chegam a 6.056.684 e os que têm alguma dificuldade atingem um universo de 29.209.180 brasileiros.
Não são todos os 24%, mas se tomarmos por base os totalmente cegos e aqueles que têm enormes dificuldades para enxergar teremos uma parcela considerável de prejudicados em potencial.
Independentemente disso, porém, há de se considerar o simbolismo do descaso com que a condição dos advogados e das partes com deficiência visual foram tratadas pelo Judiciário brasileiro que, certamente, gastou milhões com um sistema, o PJe, que sequer atende a normas internacionais de acessibilidade e que, por tal razão, já se mostra obsoleto e isso apenas para dizer o mínimo.
A quem iremos responsabilizar?
O que mais de descaso em termos de descumprimento de direitos fundamentais encontraremos dentro do próprio Poder Judiciário e que continuarão ocultos por não encontrarem pessoas como a advogada Deborah Prates para se insurgirem contra eles?
Que o exemplo de Deborah nos inspire e nos anime a seguir adiante como um bálsamo a perfumar nossas batalhas muitas vezes tão inglórias.
Salve, salve, Dra.
Deborah Prates!
Noelia Brito é advogada e procuradora judicial do Município.