Por Roberto Numeriano, cientista político A fotografia do menino Paulo Henrique Félix da Silveira, 9 anos, nadando no meio de detritos de uma sociedade há muito apodrecida, chocou os dois “brasis” já de todos nós conhecidos.
O dos hipócritas e o dos cidadãos que realmente ficam consternados com a violência da cena.
Morador da favela Saramandaia, no Arruda, Paulinho trabalhava e, para escárnio nosso, divertia-se na lama e na fetidez de um sistema social e político na essência falido.
O que me surpreendeu não foi a foto em si, mas a mesma ter causado esse choque que reverberou pelo mundo.
A grande repercussão, até local, da cena na qual miséria absoluta e felicidade infantil parecem amalgamadas como algo indissociável, provocou-me um desses espantos equívocos, pois o fato já demonstrado é que não deveríamos sentir particular nojo do que nos constitui como algo socialmente estrutural, quase orgânico.
E, no entanto, lá está Paulinho dando braçadas na podridão do nosso consumismo visceral, à caça de garrafas plásticas, latinhas de alumínio, vidros.
Quantos de nós, cidadãos, estamos acostumados com essa cena?
Quantos de nós, recifenses, podemos dizer que isso choca?
A rigor, todos os bons e sensíveis recifenses podem dizer que sim, e até mesmo os hipócritas de governos e de partidos, estes quase sempre responsáveis por pagarem os votos de famílias miseráveis como a de Paulinho.
Mas o que parece chocar muito pouco, fede tanto ou mais do que a lama social e moral simbolizada no menino do Canal do Arruda.
A Arena Pernambuco, a qual já estamos sustentando pelas benesses do governo estadual, é uma dessas coisas que fede mil vezes mais do que as águas podres.
Fede, e muito, a nossa baixa qualidade do ensino fundamental e médio, com índices que estão a merecer uma reportagem investigativa profunda.
Fede também a violência dos assaltos e das mais de 4 mil mortes por assassinato, a cada ano.
Fedem os transportes públicos e a saúde pública.
Esse horror de uma sociedade falida, desgraçada, sob uma violenta segregação socioeconômica, esse horror certamente nos humilha e assusta.
Mas deveríamos buscar entender por que toda essa (des)ordem natural das coisas parece ter naturalizado em nós o sentimento de um horror ainda maior, que é o de viver sob uma crescente e imoral concentração de renda, enquanto se agravam as disparidades entre a qualidade de vida de ricos e pobres.
Esse é o horror maior.
Roberto Numeriano é cientista político, jornalista, professor e militante do PSOL-PE.