Por Adriana Rocha Coutinho, vice-presidente da OAB-PE Um dos fundamentos mais importantes do direito constitucional contemporâneo e democrático, é a proteção às normas jurídicas destinadas à concretização da representação popular direta.

No direito alemão já se defende, inclusive, a tese de que seria possível a existência de mecanismos de interpretação constitucional, via de regra conferida ao Estado, que incluam outros setores da sociedade, alargando ainda mais o conteúdo do ideal democrático em questão.

A América latina vive um momento único de efervescência ideológica, sendo cada vez mais forte a corrente de que existe um novo constitucionalismo aplicado nos países que a compõem, constitucionalismo este liberto de vários dos dogmas cultuados há séculos pelos modelos europeus, ou mesmo pelo modelo norte-americano.

O Brasil, diferentemente, redigiu sua Carta Constitucional a partir de paradigmas tradicionais, mas inovou significativamente a sua história em matéria de direitos e garantias fundamentais.

Privilegiou, ao menos formalmente, uma série dispositivos que concretizam a soberania popular, honrando a ideologia redemocratizadora do momento político em que surgiu, tão festejada pela maioria dos constituintes e políticos que colaboraram para a sua promulgação .

O plebiscito, o referendo, a iniciativa de lei pelos cidadãos, e até mesmo a Ação Popular, são exemplos inequívocos de que existem no direito pátrio instrumentos viabilizadores da participação política direta, e que poderiam, em tese, definir e controlar atos emanados dos nossos governantes, do legislativo e até do judiciário No entanto, é frequente a observação dos profissionais da área jurídica, bem como de cientistas políticos e de sociólogos, de que existiria uma ineficácia nessa estrutura constitucional posta à disposição da sociedade para a realização plena da cidadania.

Em parte o problema surgiria em decorrência da falta de regulamentação clara de alguns desses instrumentos, como as hipóteses de referendo e plebiscito, ou ainda pela dificuldade em cumprir-se com algumas exigências formais, como a quantidade de assinaturas para a proposição popular de lei.

Mesmo que admitamos esses entraves como justificativas para a ausência de um maior “ativismo” dos cidadãos nas questões de Estado, não se pode deixar de lado outro e grave problema de nossa vivência democrática, e que provavelmente é o verdadeiro vilão da história: a falta de educação política.

Alguns avanços foram realizados e vêm contribuindo para a diminuição da descrença, e do desinteresse da população pelas instituições públicas, como a “ Lei da ficha limpa”(Lei Complementar 135/10), o incentivo à igualdade de gênero na formação e representação dos partidos, e o investimento do Estado na informatização e segurança dos sistemas de votação.

Tudo isso, por outro lado, demonstra a amplitude da função legislativa, sobretudo na regulamentação e efetivação dos direitos relacionados à cidadania, bem como a relevância de políticas públicas que despertem nos eleitores a vontade de atuar mais, e de lutar pelas causas republicanas.

Todos esses argumentos traduzem possibilidades para a construção de uma educação política verdadeira, somados ao acesso verdadeiramente amplo sobre informações de quais são, e como funcionam, todos os instrumentos legais favorecedores da cidadania.

Mas é preciso muito mais quando a intenção é a de suprir a lacuna deixada por nossa história, e com a licença daqueles que entendem não ser oportuno lembrar de heranças do período de ditadura, a destruição da consciência cidadã iniciou-se com a destruição da liberdade de expressão e com a manipulação do sistema educacional, que visava exclusivamente impedir que crenças políticas divergentes prosperassem à época, o que ameaçaria o Estado autoritário estabelecido com o golpe de 1964.

A conta fica mais alta quando consideramos que a abertura democrática promovida pela atual Constituição e as consequentes reformas no sistema educacional não vêm revertendo, ao menos no aspecto da compreensão do conceito de cidadania, o simbolismo negativo suportado pelos detentores de mandatos políticos.

E aparentemente é o legislativo, que possui mais representantes eleitos diretamente do que qualquer outro poder, que mais sofre com a crise de legitimidade.

O aparente choque entre eleição direta e legitimidade não deve e não pode ser encarado com naturalidade, sobretudo em um sistema que possui como regra o voto direto, universal e periódico.

Buscar a cidadania perdida após 25 anos de Constituição, é saber diferenciar as instituições de seus representantes, é ter coragem de manifestar sua insatisfação com o poder público, consciente de que a lei é para todos, é defender a liberdade de expressão, é escolher seu candidato e lembrar do seu nome posteriormente, é suportar a democracia e seu pluralismo(que nos traz direitos mas também nos impõe deveres), é ler a Constituição Federal e defender suas normas e seus valores.

E tudo isso pode ser aprendido e compreendido nas escolas.

Ou não?

Aquilo que nos parece óbvio ou mesmo utópico, foi traduzido magistralmente por Konrad Hesse, na obra “A força normativa da Constituição, destacando-se a submissão das esferas públicas e privadas à supremacia constitucional.

A tese oposta é a da “Constituição Real”, de Ferdinand Lassale, que nos deixaria reféns do mundo dos fatos, das oportunidades e dos oportunismos políticos, reconhecendo no texto constitucional apenas uma folha de papel em branco, sujeita a oscilações interpretativas de acordo com a força ou com o poder que tivesse maior destaque na sociedade.

São 25 anos de vigência e muito ainda por fazer.

Antes de defendermos uma possível mudança de Constituição no Brasil, vamos continuar aprendendo a preencher o conceito de cidadania, defendendo e valorizando todas as virtudes da nossa Carta Política, e que não por coincidência, mas por merecimento, foi igualmente batizada de “cidadã”.