Por Michel Zaidan A repórter do Jornal paulistano “O Estado de São Paulo”, Eliana Cardozo, me pede que fale do que é atual ou ultrapassado na obra do florentino Nicolau Maquiavel, relacionando-o com os políticos brasileiros e particularmente, o pré-candidato à Presidencia da República, Eduardo Campos.
Em primeiro lugar, é muito difícil comparar o pensamento de Maquiavel com os políticos brasileiros, e particularmente o primeiro mandatário de Pernambuco.
A história guardou do ilustre florentino uma caricatura grosseira (e pouco lisongeira) de seu pensamento que tornou-se sinônimo de politicagem, perfídia, traição, ambição a qualquer custo e fingimento profissional.
O termo “maquiavelismo” foi - e ainda é - empregado de maneira pejorativa e amoral, como sinônimo de baixas e vis ações praticadas pela pior espécie de gente.
Mas obra de Nicolau Maquiavel inaugura o realismo no pensamento político ocidental.
Antes dele, talvez só o grego Tucidedes tenha abertamente defendido que o poder e a fôrça sejam o critério de verdade da história, seja lá quais forem os vencedores de turno.
O realismo da teoria política de Maquiavel fêz escola, exercendo uma forte influência no pensamento social moderno.
E um filósofo tão contemporâneo, como Michel Foulcault poderia com facilidade ser definido como herdeiro de Maquiavel.
Os revolucionários sociais também se ligam à forte influência da sua teoria política, senão não entenderiamos a obra de Marx, Lênin, Gramsci e outros.
Por que essa obra é um divisor de águas na história do pensamento político e social? - Por conta da chamada “ética das consequências” associada às famosas “razões de Estado”.
Antes de Maquiavel, tínhamos - sob a forte influência da Igreja Católica de Roma - uma “ética das convicções”, que prejulgava a moralidade intríseca das ações humanas, independentemente de seus resultados.
Uma ação seria virtuosa e justa se fôsse inspirada nos ensinamentos religiosos e morais da Igreja ou de seus interpretes autorizados.
Mesmo que essa ação condenasse a morte milhões de súditos, num cálculo ou estratégia errada, ela não deixaria de ser considerada virtuosa, pois estaria em conformidade com os ensinamentos da Igreja.
O que Maquiavel fêz foi avaliar a moralidade ou a justeza de uma medida ou uma ação pública pelas consequencias que ela provocou na sociedade ou no reino.
A partir de Maquiave l, a conduta dos homens públicos (chefes, reis e imperadores) passou a ser avaliada pelos resultados concretos, em vista das famigeradas “razões de Estado”, e não pelos códigos morais e éticos utilizados pela religião e seus sacerdotes.
Passou-se a admitir que na Política, haveria uma “zona cinzenta” onde se moveriam as autoridades públicas de dificil delimitação entre o certo ou errado, a não ser pelos resultados perseguidos pelos governantes; nem sempre muito claros para a maioria da população.
A “ética das consequência” levou a popularização e a vulgarização do célebre ditado:“os fins justificam os meios”, entendendo-se que não há meios intrisecamente bons ou maus, independentemente da consecução dos fins.
E estes estariam foram de qualquer avaliação moral.
Naturalmente, que aceitando tal postulado todo tipo de meio, para a consecução de um fim, poderia ser utilizado, desde que desse resultado.
O que pareceria a um adepto de uma moral substancialista ou metafísica, uma espécie de cinismo descarado.
E seria, se fôssemos aplicar tal critério às ações humanos no plano da vida privada.
Essa ética se apoia numa certa concepção da natureza humana, segundo o humanismo passional da Idade renascentista.
Para esses pensadores humanistas, a natureza humana é imutável e caracteriza por um conjunto de atributos eternos, como a inveja, a ambição, a vaidade, a perfídia, o fingimento, o egoismo etc.
Segundo Maquiavel, os humanos seriam um misto de besta com anjo.
E uma sociedade que ensinasse a cada um a se comportar apenas como anjo, estaria entregando os inocentes às garras dos lobos e das cobras.
Uma educação realista teria que seguir o modelo do “centauro de Quiron”: meio besta, meio humano. sob pena de sucumbir os inocentes diante da maldade dos injustos.
Mas apresentar o pensamento de Maquiavel só por este lado, seria de uma unilateralidade a toda prova.
A “ética da consequências” definida por nosso autor deveria estar a serviço de um ideal, de uma utopia: a unificação nacional italiana e a República.
Maquiavel não era um cínico ou um realista sem alma ou coração.
Sua teoria realista da Política e do Estado estava a serviço de um ideal: o pensador florentino era nacionalista e republicano.
Seu objetivo era libertar a Itália dos estrangeiros e da influência de Roma e evitar a perigosa desagregação política e territorial entre os diversos reinos italianos, alguns governados pela Igreja ou por príncipes estangeiros.
Só quem não leu a exortação final de maquiavel aos Borgias e o livro que escreveu intitulado: Discursos da Segunda Década de Tito Lívio pode ignorar o lado utópico, sonhador, normativo e crítico do pensamento maquiaveliano.
Aí, avulta, como diria Gramsci, o elemento criador, não apenas conquistador, do pensamento de Maquiavel.
Em seu livro: Maquiavel, a Política e o Estado Moderno, Gramsci redefine o princípe como o moderno partido político e ilumina o perfil do ilustre florentino, ao contrapor seu pensamento ao de Giuccardini, ao dizer que Maquiavel queria criar um novo equilíbrio de forças na Itália, enquanto o embaixador estava preocupado em manter o que já existia.
Este é outro Maquiavel.
Infelizmente, os políticos e a Política contemporanea só ficaram com um pedaço da obra do pensador italiano: o realismo político.
Despojaram a política de qualquer base normativa, e a transformaram num mero discurso estratégico, governado por imperativos de poder.
Deixaram de fora toda base idealista, utópica, republicana, que ela possuia.
Tornaram-se revolucionários sem causa, a serviço do poder pura e simplesmente.
E ajudaram a popularizar a triste frase: “o fim justifica os meios”, independentemente de que fins e de que meios.
Os políticos modernos esqueceram o outro lado da obra.
Apossaram-se do menos importante, inclusive abandonando as tipologias de forma de governo, apresentadas por ele.
Como se Maquiavel fôsse o apologeta das tiranias absolutistas, que perseguiam o poder pelo poder.
Está mais do que na hora de afastar o pensamento do florentino da Política como mero discurso estratégico, desprovido de pretensões de validade ética ou civilizadoras, e aproximá-lo das vertentes iluministas e contemporaneas, que vêm a Política como produção de um consenso democrático em torno de uma agenda do bem comum.
Assim estaremos fazendo justiça a ele e dando uma vida à sua obra, destinada a durar muitos e muitos anos.