Por Roberto Numeriano As jornadas de junho do inverno mais quente da história política brasileira estão assombrando as velhas esquerdas e as direitas de todos os matizes ideológicos.

Leio os artigos, comentários de redes sociais, reportagens…

E cada qual que enxergue golpe de Estado em gestação, ascensão de ideários nazi-fascistas, levante popular de natureza patrioteira, pura e simples baderna de rebeldes sem causa, revolta de classe média extorquida por governos corruptos.

São opiniões para todo gosto, até visceralmente opostas, mas ainda assim compreensíveis no quadro de um país e sociedade em choque, reagindo contra a miséria de uma política elitista que nos tem como invisíveis, tolos e inúteis cidadãos.

Participei ontem da primeira jornada do Recife.

Marchei entre tantos milhares como político e cientista político, como professor e servidor público.

Não poderia ser diferente.

Por mais que um movimento dessa bela magnitude e profundidade queira se dizer apolítico (uma contradição em si mesma), ninguém ali estava sem encarnar uma dada condição política de ser e de existir.

Por mais que você queira mostrar-se apartidário (direito legítimo e natural, com ou sem os equívocos da alienação ideológica), todos nós assumimos inconscientemente, para o bem ou para o mal, dadas bandeiras levantadas por partidos, à esquerda e à direita do espectro ideológico.

Ali, entre milhares, todos juntos e misturados, saía em marcha um cansaço e uma indignação que eu, como militante político desde 1984, já imaginava como pouco provável, na forma massiva e extensa, como foi a campanha pelas Diretas.

Não me preocupei, ao lado de minha filha Giovanna e de suas amigas, com uns poucos cartazes anti-políticos e anti-partidos.

Fui cumprimentado por alguns participantes que certamente ali estavam com o mesmo sentimento meu de cidadão brasileiro que se sente humilhado por governantes que torram 85 bilhões de reais em estádios de futebol, enquanto nossas universidades, escolas e colégios públicos sofrem processos de degradação física e acadêmica.

Também não me preocupei com a explosão de cantos espontâneos do nosso belo hino nacional (como percebo em certa velha esquerda), ou do revolucionário hino pernambucano.

Amo nosso interminável hino, e nem por isso deixo de amar a Internacional Socialista. É claro que, à esquerda e à direita, entidades, políticos, partidos e governos tentarão capturar e instrumentalizar os sentidos e significados dessas jornadas.

Faz parte do jogo, pois, se assim não ocorresse, de fato esse dobrar de sinos não seria essencialmente político.

Como tal, esse movimento já está em disputa político-ideológica aberta.

A imprensa conservadora quer reduzi-lo a uma campanha pura e simplesmente cívica, diluindo-o sob uma bandeira moralista de caráter anti-corrupção, bem ao gosto de certa classe média.

A velha direita golpista está extasiada com o repúdio a todos os partidos (no fundo, àqueles partidos de esquerda que desde sempre estão fazendo o bom combate contra as mazelas que o movimento denuncia).

Imagina, essa direita diretamente responsável por um país que é a 7ª economia do mundo, mas exibe graves índices de desigualdade social, que em breve essas multidões serão domesticadas por tanques e fuzis.

Certa esquerda golpista (que vê revolução logo ali na esquina) imagina transformá-lo numa rebelião popular, radical e revolucionária.

Apostam, esses, numa radicalização que possa abalar as instituições e, instalado um vácuo de poder, fazer o assalto aos céus.

Esses são perigos reais e imediatos que esse movimento e suas jornadas sofrem.

A inexistência de uma agenda constituída por bandeiras pragmáticas e históricas pode implicar em dois efeitos: a diluição e desarticulação da luta, por cansaço e ausência de eixos institucionais pelos quais suas demandas podem ser encaminhadas; ou a apropriação hegemônica de uma dada visão ideológica sobre o caráter e o sentido dessa luta.

Nesse caso, o racha e o esvaziamento do movimento será um efeito típico e natural.

Historicamente, movimentos dessa grandeza e sentido sempre definiram um programa de lutas realista e pragmático.

Como cidadão e político, indico aqui alguns pontos que julgo importantes para todos aqueles que, direta e indiretamente, estão engajados nessa luta por um país dos brasileiros: a.controle público e democrático da comunicação social (nem de longe significa censura e / ou intervenção estatal); b.proibição do financiamento privado de campanhas políticas; c.reforma tributária para desoneração de tributos sobre os salários; d.reforma política (proibição de toda e qualquer reeleição e instituição da revogabilidade de mandato parlamentar, por decisão popular); e e.criação de comitês populares, com prerrogativas legais, responsáveis pela definição e gestão de políticas públicas para o setor de transportes públicos (adoção, por exemplo, do VLT em todas as capitais), educação, segurança e saúde.

Claro, quem agora lê essas propostas pode discordar e propor idéias opostas.

Trata-se, como disse, de uma disputa político-ideológica.

O que sei é que, se me perguntarem por quem os sinos dobram, eu vou responder de todo o coração: eles dobram por ti.

Roberto Numeriano é professor, jornalista, cientista político e militante do PSOL/PE.