Michele Souza/JCImagem A maioria das pessoas não tem a mínima ideia do que seja ser privada de liberdade.

Quando conheci Berlim, tive uma experiência amarga.

Fui visitar o museu do holocausto, como milhares de turistas o fazem.

Os arquitetos foram muito inteligentes com a proposta do local.

Depois de o turista visitar todo o acervo, ver todas aquelas atrocidades, você é jogado em um labirinto, para encontrar a saída, antes de chegar à praça onde encontra a luz, a liberdade, o ar puro novamente. É uma experiência sufocante, em que, por alguns segundos, você se sente preso, sem saída.

Imagina ficar preso sem cometer crime algum…

Essa imagem de veio à mente com a história do sequestro que Zé Nivaldo nos relata.

Poucos sabem que o publicitário e historiador José Nivaldo Junior foi um dos presos políticos emblemáticos nos duros anos do governo Médici.

Depois do seu depoimento nesta última quinta feira, à Comissão da Verdade, ele concedeu entrevista exclusiva ao Blog de Jamildo.

O que o senhor espera ter acrescentado às investigações com o seu depoimento?

JNJ – Dividi minhas declarações em três tópicos principais, além de responder a perguntas muito oportunas.

Iniciei com uma parte conceitual, necessária para corrigir várias distorções sobre a resistência armada ao regime.

Em seguida falei sobre o que sofri e o que testemunhei.

Para não ficar apenas em palavras, juntei vários documentos com provas de que os agentes da repressão agiam sob ordens superiores, institucionalmente articulados e à margem da própria lei de exceção imposta pela ditadura.

Eram, portanto, duplamente foras da lei.

Quem agia articulado?

As polícias militar e civil, os órgãos de repressão setorial das forças armadas, as forças para-militares, as diversas instituições públicas, inclusive a Universidade Federal.

Esta tinha um setor que abastecia os órgãos de repressão com informações sobre a atuação dos estudantes.

No meu caso, tem uma coisa que chega a ser engraçada: até os meus óculos foram objeto de um informe partido de “colaboradores” da repressão de dentro da Faculdade de Direito, onde eu estudava na época.

Tudo isso articulado e sob o comando do IV Exército.

O senhor tem como provar isso?

JNJ – As provas produzidas pela burocracia dos próprios órgãos da repressão são abundantes, basta serem lidas corretamente.

No meu caso, além das provas documentais do meu seqüestro e da articulação entre os órgãos de repressão e outras entidades governamentais, anexei o depoimento do meu pai.

Ele é o médico, pecuarista e escritor José Nivaldo, hoje com 88 anos.

Homem de direita, defensor do regime militar, não se conformou com o meu seqüestro.

Empreendeu uma luta titânica, desafiando a chamada comunidade de informações, para saber onde e como eu estava.

Há 10 anos publicou pela editora Bagaço, um livro intitulado “Pesadelo” que narra essa saga.

E contém informações fundamentais para desvendar como funcionava a repressão em Pernambuco na época.

Entreguei um exemplar à Comissão e solicitei que seja feita o que os historiadores chamam de crítica interna do documento.

Esse trabalho técnico possibilita acolher como provas informações que não foram formuladas como denúncias mas têm um valor histórico inquestionável.

Quais as distorções conceituais que o senhor pretende corrigir?

JNJ – Vou começar com um exemplo.

Semana passada, o Coronel Ustra, ex-comandante do DOI/CODI de São Paulo, disse que agiu defendendo a lei e a ordem.

Ora, foi exatamente o contrário.

Ele seqüestrava, torturava, matava e não estava autorizado para isso nem mesmo pelas leis da própria ditadura.

A repressão agia para garantir um regime ilegítimo desde a sua origem.

Em 64, a ordem constitucional vigente foi violentada e implantou-se uma ditadura terrorista.

Não apenas os atos repressivos, mas todos os atos praticados pelos agentes da ditadura careciam de um mínimo de legitimidade.

Assim eles nos acusavam disso, ousam nos acusar até hoje, quando eles é que eram os verdadeiros subversivos, os terroristas, os bandidos.

No seu depoimento o senhor defendeu a luta armada contra o regime militar?

JNJ – Defendi e pretendo defender sempre.

Existe uma incompreensão muito grande com relação a este tema.

Em primeiro lugar, registre-se que o Golpe de 64, seguido de um manancial de violência, não foi uma reação a ações armadas e sim a um discurso do presidente legítimo do país, João Goulart, propondo reformas estruturantes.

Por sua vez, endurecimento do regime, em 68, com o famigerado AI-5 foi desencadeado por um discurso na Câmara, feito pelo deputado Márcio Moreira Alves.

Então, não procede a argumentação de o regime endureceu por causa da luta armada.

Depois é preciso considerar que a expressão luta armada não se aplicava apenas a ações de guerrilha urbana ou rural.

Qualquer ação de livre manifestação do pensamento, fora dos estreitos limites da oposição autorizada, só podia ser feita com proteção armada.

Distribuição de panfletos, pichação de palavras de ordem, comícios relâmpago contra a ditadura ou o imperialismo eram ações onde se utilizava armas para a defesa dos manifestantes, pois corria-se o risco de prisão ou morte.

Quem participou sabe.

Além disso, a luta armada é uma forma legítima de reação contra regimes ditatoriais, aceitas no mundo ocidental pelo menos desde Locke, um dos estruturadores do pensamento liberal.

Atribuir às ações armadas o endurecimento do regime militar é o mesmo que atribuir à Resistência as atrocidades cometidas pelos nazistas na França.

Ou aos Vietcongs os massacres perpetrados pelos Estados Unidos no Vietnã.

No caso do Brasil, cumpriu um papel essencial no aprofundamento das contradições do regime militar e muito contribuiu para o desgaste da ditadura.

Por que o senhor disse que foi seqüestrado e não preso?

JNJ – Porque foi o que se passou.

No dia 29 de agosto de 73 eu estava em casa, na companhia do professor Biu Vicente, quando fomos ambos seqüestrados, levados para o DOI/CODI.

No dia 5 de outubro, fui apresentado ao DOPS e preso oficialmente.

Biu Vicente, nem chegou a ser preso oficial, foi solto de lá mesmo.

Entreguei à comissão documentos do próprio DOPS que provam essa situação ilegal.

Nesse período de mais de um mês, permaneci, juntamente com dezenas de outras pessoas, em cativeiro implantado no interior da sede do IV Exército.

Sendo torturado, manipulado e podendo ser morto, como aconteceu com tantos.

Inclusive com Manoel Lisboa, cuja farsa montada para justificar sua morte espero ter contribuído para desmoralizar de vez.

Como assim?

JNJ – Entre as situações mais dramáticas que presenciei cito as de Bartolomeu (um companheiro cujo sobrenome não lembro e cujo caso especialmente doloroso esqueci de citar à Comissão), Juarez José Gomes, Leonardo Cavalcanti, Dionary Sarmento e Manoel Lisboa.

Vi muita gente sofrida em conseqüência das torturas, mas esses casos são especialmente dramáticos.

Quanto a Manoel Lisboa, sua situação física era tão chocante, tão aterradora, tão indescritível, que durante muito tempo eu não queria admitir para mim mesmo que tinha presenciado aquilo.

De um lado, o heroísmo de que é capaz um ser humano em defesa dos seus ideais.

De outro, a maldade sem limites que os algozes da ditadura eram capazes de produzir friamente.

Como o senhor sabe que o tiroteio em que Manoel Lisboa teria morrido foi uma farsa?

JNJ – No início de setembro, quando o avistei no DOI/CODI em estado terminal, ele não tinha a menor condição de ficar em pé, de se locomover, de usar as mãos.

Estava destroçado e, me custa dizer isso, apodrecido.

Imagine uma pessoa nessas condições, em cativeiro, nu, com as vísceras à mostra, pés e mãos em carne viva, ir para São Paulo trocar tiros com a polícia…

Outras pessoas testemunharam esse quadro dantesco e já registraram isso em diversas ocasiões.

Manoel foi assassinado cruelmente no interior da sede do IV Exército, ali ao lado da Faculdade de Direito do Recife.

E muitos dos torturadores se jactavam disso para infundir medo aos demais sequestrados.

O senhor tem provas do envolvimento direto do comando do IV Exército nessas operações clandestinas?

JNJ - Inúmeras.

Por exemplo: uma carta que escrevi ao meu pai no DOI/CODI foi entregue a ele na segunda seção do IV Exército, onde também lhe apresentaram material apreendido nos chamados aparelhos (residências de militantes clandestinos) do PCR.

E o que é pior: por duas vezes eu fui levado até lá para meu pai e minha mãe constatarem que eu estava vivo.

Na segunda vez, estava presente minha mulher na época, Fátima Souza.

Depois de ser visto e de uma breve troca de abraços e palavras, voltei para o cativeiro.

Os militares conseguiram provar que eu estava vivo, mas o meu estado deplorável deixou uma péssima impressão acerca do tratamento que eu estava recebendo.

Meu pai registra isso no livro.

O senhor falou da morte de Manoel Lisboa.

E os demais 4 mortos do PCR?

JNJ – Não tenho condições de acrescentar nada ao que se sabe, pois não mantinha contato com eles.

Eu não era militante do PCR, não conhecia detalhes internos da organização.

Eu era do movimento estudantil.

Era um amigo, um aliado, que contribuía financeiramente e participava de ações de propaganda contra o regime militar.

E o caso do personagem que o senhor chamou de Mané Tatu?

JNJ – Lembrei durante o depoimento, em decorrência de uma pergunta formulada pela professora Socorro Ferraz.

Entre seqüestrado e preso oficialmente, eu estive detido em pelo menos 6 locais diferentes ao longo de quase dois anos.

No período em que fiquei no quartel da Polícia do Exército, em Olinda, existia lá um prisioneiro, um camponês do interior remoto do Maranhão, de nome Manoel.

Como tentou fugir cavando um buraco na parede da cela, era chamado de Mané Tatu, e esse foi o nome que gravei.

Uma noite, chegou uma equipe com jeito de DOI/CODI, mandaram que ele se aprontasse e o levaram.

Na saída disseram algo como: “Chegou tua hora filho da puta, tu vai virar comida de tubarão”.

Ontem, durante o depoimento, alguém falou que ele foi morto por Sérgio Fleury.

Que, aliás, freqüentava o DOI/CODI de Pernambuco quando eu estava lá e fazia questão de se exibir e ser reconhecido pelos seqüestrados.