Foto: reprodução Por Roberto Numeriano Uma das causas claras da sobrevivência e longevidade de sistemas e regimes políticos e religiosos é a capacidade de adaptação em cada tempo histórico vivido.
E é sempre o ser humano quem se adapta, movendo suas instituições para ora resistir, ora recuar, ora avançar.
Trata-se, em essência, de saber batalhar diante das velhas condições objetivas de cada luta, conforme suas armas (ideológicas e políticas) e suas “tropas” no terreno de combate.
Dia desses, a Igreja Católica Apostólica Romana escolheu em conclave o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio para novo Papa, o qual decidiu se chamar Francisco – inspirando-se em São Francisco de Assis.
Mal se dissipou nos céus de Roma a fumaça branca que anunciou a escolha, li vários artigos de militantes de esquerda sobre o evento – quase todos com análises rebaixadas, ofensivas e preconceituosas quanto à escolha do cardeal, à Igreja Católica como instituição e aos seus ritos e doutrina.
Um desses artigos é da lavra de um dirigente do Comitê Central do PCB, Mauro Iasi, e pode ser considerado um “resumo da ópera” dessas análises enviesadas.
Em tom de arenga, o texto sai predicando contra a Igreja Católica como se esta instituição fosse um todo institucional homogêneo que, nos termos do texto, em nada contribui ou contribuiu de positivo para a história humana.
Li e reli para entender o que inspira um intelectual de renome a não enxergar o que são as instituições e seus atores.
Se assim fizesse, perceberia certas similitudes em ambas as instituições (PCB e Igreja Católica, não nos termos, é claro, de suas visões ideológicas sobre o mundo e o homem), quanto ao que é comum aos agrupamentos nas suas contradições intrínsecas de natureza política e ideológica.
Tanto quanto a Igreja Católica, o PCB tem seus ritos e doutrinas político-ideológicas, bem como, desde há alguns anos, uma visível tendência ao dogmatismo na interpretação do legado marxiano, o qual deságua no esquerdismo pueril e auto-referente.
Como explicar a gênese intelectual desse artigo (que, numa das frases, chama o Papa Emérito, Bento XVI, de “nazista”) pela mão de um intelectual do PCB, partido que nos anos 40, por iniciativa de projeto de lei do então deputado federal Jorge Amado conseguiu aprovar no Congresso Nacional a liberdade de culto religioso no Brasil?
Como explicá-lo num partido que teve entre seus quadros um homem do povo como Sobreira, comunista até à medula, que foi um dos criadores/promotores da chamada Companhia do Quilo, da caridade kardecista?
Como, sobretudo, entender que um partido da história do PCB, o qual abrigou algumas das mentes mais brilhantes da intelectualidade brasileira, esteja sendo rebaixado por semelhantes textos de ranço pequeno-burguês, tresandando raiva e incoerência político-ideológica?
O sermão comunista a terçar armas contra a Igreja Católica é uma das coisas mais vãs numa sociedade secularizada.
Comunica, no máximo e mal, para dentro das fileiras partidárias.
E o faz, sem dúvida, ferindo os sentimentos religiosos dos militantes e filiados, católicos, sobretudo.
Sob essa prédica farisaica, o militante comunista, uma vez praticante católico, está irrevogavelmente condenado/vetado em sua livre expressão religiosa, pois esse marxismo dogmático busca instituir o partido como uma esfera/mundividência substituta que à partida não reconhece a subjetividade do ser militante.
Na prática, esse marxismo sem dialética quer fazê-lo um “fiel” comunista, doutrinado por um outro tipo de fé.
Em nenhum país do mundo essa pretensão reacionária de esquerda deu certo: cedo ou tarde, esta e outras causas foram a razão de sua derrocada política, ideológica e social.
Esse é um dos problemas crônicos dos partidos de filiação comunista com sermão revolucionário petrificado no passado, na teoria e na prática: possuem poucos “fiéis” ideológicos e ainda pretendem que aqueles com prática religiosa se tornem religiosamente “desalmados”.
Pretendem (do mesmo modo como fez/faz a velha direita) “pregar” pela metade a frase marxiana: “A religião é o ópio do povo”.
Sem lembrar o complemento da mesma: “É o suspiro da criatura oprimida”.
Está aqui, implícito, o reconhecimento marxiano dessa necessidade humana sob as condições de sua miséria material.
O artigo, talvez imaginando que todos somos (trabalhadores, assalariados ou não) possivelmente assimiláveis de modo absoluto ao laicismo do tempo (que, cada vez mais, parece-nos uma nova e radical religião da modernidade), parece pretender que esse movimento se dê nos termos de uma ideologia de esquerda que, em essência, está se degradando justamente porque a maioria dos seus intelectuais dirigentes formula e escreve dogmaticamente sobre os processos políticos, sociais e econômicos.
Vivo fosse, certamente Marx enxotaria semelhantes “apóstolos” que transformam a razão dialética em dogma doutrinário.
A rigor, se há um sinal da dialética das mudanças nas instituições, um desses sinais foi dado pela eleição do Papa Francisco.
Claro, não estamos aqui fazendo juízos avalorativos nem a imaginar/prever mudanças em tal ou qual sentido na Igreja Católica, que está dando sinais de adaptação para possivelmente renovar-se junto aos seus fiéis, abrindo-se também para o diálogo ecumênico.
Não é apenas por força da mensagem cristã que a instituição católica chegou a dois mil anos de existência.
Enquanto isso, certo comunismo de Guerra Fria continua condicionado aos mesmos tipos de combates e (em alguns casos) erros vitais do passado ao analisar o ser do homem e suas mediações sociais e espirituais numa clave reducionista, mesquinha.
O sermão comunista ao qual nos referimos é bem a medida de quem prega idéias desertas num deserto de idéias.
Roberto Numeriano é cientista político, professor e jornalista