Por Silvio Pessoa Júnior Ao suspender a eficácia da Lei Federal n. 12.734/2012, que estabeleceu novos critérios de repartição dos royalties oriundos das atividades de exploração e produção de petróleo e gás, a liminar da Ministra Carmen Lúcia delimitou os parâmetros jurídicos do debate que Estados produtores e não-produtores travarão perante o Supremo Tribunal Federal (STF).
De modo mais abrangente, o STF deverá estabelecer quais são os princípios e valores político-constitucionais que definem, na prática, o alcance e o sentido de nosso pacto federativo, notadamente em relação aos objetivos fundamentais de solidariedade e redução das desigualdades sociais e regionais positivados no artigo 3º da Constituição Federal (CF).
Na liminar proferida na ação direta de inconstitucionalidade (ADI) nº 4.917, a relatora divisou plausibilidade nos seguintes argumentos do Governador do Estado do Rio de Janeiro: a) segundo a disciplina do artigo 20, §1º da CF, os royalties possuem natureza jurídica indenizatória, razão por que o ente federado que não corre risco de sofrer danos da atividade petrolífera não faz jus a qualquer valor e, portanto, b) apenas os Estados e Municípios ditos produtores são titulares do direito subjetivo público de participar do resultado da exploração petrolífera ou de perceber compensação financeira por essa exploração, conforme a literalidade do artigo 20, §1º da CF; c) a lei combatida promove desequilíbrio financeiro estabelecido pelo constituinte que garantiu aos Estados e Municípios ditos produtores participação no resultado da exploração do petróleo ou compensação financeira, em contrapartida à vedação constitucional (imunidade) de cobrança de ICMS em seus territórios, privando-os de vultosa fonte de receita (al. ‘b’, do inc.
X, do § 2º, do art. 155 da CF); d) ao permitir a retroação dos efeitos do diploma questionado aos royalties referentes aos contratos de concessão anteriores à sua edição, o legislador haveria afrontado o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a segurança jurídica (inc.
XXXVI do art. 5º, da CF); e) a nova lei investiria contra a segurança jurídica, por desequilibrar as finanças dos Estados produtores, afetando a higidez das leis orçamentárias já aprovadas e o equilíbrio de suas contas à luz da lei de responsabilidade fiscal.
Cabem alguns comentários a propósito destes argumentos, evidentemente respeitando-se os limites deste espaço.
De início, é valido transcrever o famoso artigo 20, §1º da CF: “Art.20. (…). § 1º - É assegurada, nos termos da lei, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, bem como a órgãos da administração direta da União, participação no resultado da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais no respectivo território, plataforma continental, mar territorial ou zona econômica exclusiva, ou compensação financeira por essa exploração”.
A premissa básica do argumento – natureza jurídica indenizatória do resultado da exploração de petróleo e gás (royalties) – não resiste ao exame da própria jurisprudência do STF e deriva da leitura imprecisa do § 1º, do art. 20 da CF.
O dispositivo prevê duas categorias jurídicas distintas: (a) a participação no resultado da exploração de petróleo e gás (ou seja, o royalty) e (b) a compensação financeira por essa exploração.
Os royalties constituem receita originária decorrente da atividade industrial de exploração econômica de bem público (jazidas).
A compensação financeira – esta sim – destina-se a conferir condições econômicas aos entes federados em cujo território se desenvolve a exploração de hidrocarbonetos por eventuais prejuízos ambientais ou incremento de despesas com infraestrutura, segurança etc.
No modelo vigente, o legislador ordinário optou pela participação no resultado da exploração (royalties).
No RE 228800/DF e, sobretudo, no MS 24312-1/DF, o STF definiu a natureza patrimonial desta renda, recusando a tese de sua natureza indenizatória, e fixou tratar-se de receita ordinária da União, dos Estados e dos Municípios que a auferem.
Ora, o STF não poderia admitir natureza jurídica de indenização, por isso que esta se destina tão-somente a recompor prejuízo.
Já a implica acréscimo patrimonial, hipótese dos royalties.
Esta importante premissa, permite refutar o segundo argumento, pois, ao se negar o caráter indenizatório dos royalties, afasta-se a exclusividade de seu recebimento pelos entes ditos produtores.
Ademais, pode-se alegar que o art. 20, §1º da CF impõe compensação ou indenização obrigatórias apenas para a hipótese de jazidas localizadas no território dos entes ditos produtores, o que excluiria a plataforma continental, o mar territorial e a zona econômica exclusiva, domínio da União.
Nesta linha, faz sentido o seguinte raciocínio de Gilberto Bercovici: “O texto, ainda, determina que os Estados, Distrito Federal e Municípios participem dos resultados ou sejam compensados pela exploração no seu respectivo território.
A menção à exploração na plataforma continental, o mar territorial ou zona econômica exclusiva refere-se à participação no resultado da exploração dos órgãos da Administração Direta da União.
Os órgãos da Administração Direta da União não podem receber compensação financeira pela exploração de petróleo e gás natural porque não possuem território em virtude do qual necessitem ser compensados.
Estes órgãos só podem participar dos resultados nas situações em que a exploração se realiza em domínio federal, como a plataforma continental, mar territorial e zona econômica exclusiva.
Do mesmo modo, os Estados, Distrito Federal e Municípios participam da exploração ou recebem compensação financeira em virtude desta exploração se dar em seus respectivos territórios.
Não há razão para que alguns Estados e Municípios recebam recursos em virtude da participação na exploração ou da compensação financeira pela exploração que ocorre em domínio que não é seu, mas da União. (Direito Econômico do Petróleo e dos Recursos Naturais, Editora Quartier Latin, 2011, p. 343/344).
Reforça esse entendimento a perspicaz afirmação de Bernardo Strobel Guimarães e Karlin Olbertz de que “não se pode perder de mira que, ao atribuir a titularidade desses bens à União, o constituinte quis que os recursos daí derivados fossem utilizados em prol da Nação.
Se assim não fosse, os recursos seriam dos Estados e Municípios, assegurada a participação da União…”. (Federação e Royalties, in “O Direito do Petróleo e de outras Fontes de Energia, Alexandre Santos Aragão, coordenador, Lumen Juris Editora, 2011, p. 56).
Por tudo isso, é de concluir que os Estados e Municípios ditos produtores só são titulares exclusivos de direito público subjetivo quando se cogite de participação na exploração ou de compensação financeira pela exploração que ocorra em seu território.
A invocação de idêntica exclusividade em relação à participação no resultado no domínio da União não encontra guarida na Constituição.
O terceiro ponto diz respeito à questão da suposta ruptura do equilíbrio financeiro estabelecido pela CF que, para compensar a imunidade tributária sobre operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lubrificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e energia elétrica (‘b’, do inc.
X, do § 2º, do art. 155 da CF), haveria aquinhoados os entes ditos produtores com as receitas do art. 20, §1º, da CF.
Na lição de Gilberto Bercovici, tais dispositivos constitucionais não autorizam concluir que os Estados produtores recebem royalties e os não-produtores podem cobrar ICMS.
Para ele, “O fundamento do pagamento de royalties (…) é totalmente diverso desta suposta ‘compensação’.
Por sua vez, a imunidade tributária instituída para operações interestaduais que envolvam petróleo e combustíveis dele derivados se justifica, como bem ressalta Heleno Taveira Torres, para garantir a redução de custos e a distribuição uniforme destes bens em todo território nacional.
Afinal, a garantia do abastecimento do mercado interno de petróleo e combustíveis é considerada estratégica pela própria Constituição, em seus artigos 177 e 238”. (Ob. citada, p. 327).
Acrescenta ele que se instituiu contribuição sobre intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação e comercialização de petróleo e derivados, gás natural e derivados de álcool combustível (CIDE Combustíveis) precisamente com o propósito de subsidiar preços ou transporte de combustíveis e gás natural, financiar projetos ambientais relacionados com a indústria petrolífera, bem como programas de infra-estrutura de transportes (ob. citada, p. 328).
De resto, aduz o professor da Faculdade de Direito da USP que a instalação de grandes empreendimentos petrolíferos – fortemente intensivos em capital - atrai novos e diversos negócios, além de induzir necessariamente o incremento da arrecadação do ICMS, já que a imunidade tributária não se aplica às operações internas.
A liminar arrimou-se, ainda, no fundamento de que a aplicação da lei aos royalties provenientes de contratos de concessão anteriores à sua edição constituiria agressão ao artigo 5º, inc.
XXXVI da CF., que protege o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, como expressão do princípio da segurança jurídica.
Não é difícil retrucar esse argumento. É que a destinação dos royalties não é disciplinada em contrato celebrado entre a União e os concessionários.
A matéria é disciplinada em lei, possuindo, portanto, feição estatutária e não contratual.
A competência para legislar sobre royalties pertence à União, já que diz respeito ao regime jurídico de exploração de bem público integrante de seu domínio.
Ela pode promover as alterações que julgar convenientes, observadas os parâmetros constitucionais.
De há muito, o STF estabeleceu inexistir direito adquirido a regime jurídico, tendo-o confirmado, por exemplo, em relação à possibilidade de modificação das regras do FGTS que, diferentemente da caderneta de poupança, possui natureza jurídica estatutária (RE 226.855, Plenário).
Acresça-se que, mais recentemente, o STF decretou a inconstitucionalidade de dispositivos da Lei Complementar n. 62/89, que fixava critérios de partilha de receitas do Fundo de Participação dos Estados, cuja desatualização foi havida como danosa às finanças de determinados Estados.
Ora, nesta decisão reafirmou-se a mutabilidade – havida mesmo como necessária – de tais critérios, confirmando-se a natureza estatutária desse regime jurídico, de sorte a não ensejar invocação de direito adquirido (ADIs 875, 1987, 2727 e 3243, decisão de 24/02/2010).
Por fim, alegou-se que a nova lei desequilibraria as finanças dos Estados e Municípios autores, já que a perda abrupta de receita repercutiria no equilíbrio fiscal, financeiro e orçamentário.
Talvez este seja o argumento mais robusto.
A aplicação imediata da nova repartição dos royalties fará o Estado do RJ perder cerca de R$ 4,1 bilhões ainda em 2013.
A insegurança jurídica é manifesta.
Todavia, esse argumento não tem o condão de invalidar a nova lei.
Caberia ao STF, em atenção ao princípio da segurança jurídica, postergar a data em que os dispositivos questionados passariam a produzir efeitos, conferindo aos Estados e Municípios ditos produtores tempo para se adaptar à significativa perda de receita.
Para concluir, não há como deixar de registrar que este julgamento definirá a substância de nosso pacto federativo.
De certo modo, saberemos até que ponto a República Federativa do Brasil está efetivamente vinculada e obrigada a perseguir os objetivos fundamentais que lhe impôs o artigo 3º da Constituição, a saber: construir uma sociedade livre, justa e solidária (I), garantir o desenvolvimento nacional (II) e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais (III).
Ao STF não é dado interpretar a Constituição em retalhos, para tomar de empréstimo a metáfora recorrentemente empregada pelo Min.
Eros Grau.
Isto significa que a Lei 12.734/201, os artigos 20, §1º e al. ‘b’, do inc.
X, do § 2º, do art. 155 devem ser interpretados de modo sistêmico, à luz destes objetivos da República Federativa do Brasil, aos quais o constituinte de 1988 atribuiu a qualificação de “fundamentais”.
Não pode, igualmente, a Corte Suprema furtar-se de examinar a matéria sob a ótica do artigo 19, III, da CF., corolário do princípio da isonomia, e que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “criar distinções entre brasileiros ou preferências entre si”.
Se o STF entender que os royalties devem ser destinados apenas – ou mesmo prioritariamente - aos Estados e aos Municípios ditos produtores, amesquinhará as escolhas fundamentais do constituinte e – pior - consagrará a existência jurídica de brasileiros mais iguais do que os outros, para parafrasear a odiosa fórmula cunhada pelos porcos na “Fazenda dos Animais”, de George Orwell.
Silvio Pessoa Júnior é Secretário Geral da OAB-PE, Mestre em Direito Público da Universidade de Paris II