Por Gustavo Krause, ex-governador de Pernambuco O personagem biografado é Getúlio Dornelles Vargas (19/4/1882 – 24/8/1954).

Bóris Fausto avalia Getúlio sem meias palavras: “Para o bem ou para o mal, foi a maior figura política do Brasil no século XX”.

O grande historiador baliza os caminhos dos que pretendem estudar o político brasileiro sobre o qual mais se escreveu no país.

Em outras palavras, sobre Getúlio, sobram razões para os mais extremados sentimentos de paixão e ódio ou de louvação exagerada e devastadora desconstrução.

De fato, o jornalista Lira Neto se propôs a executar um projeto biográfico trilhando o difícil caminho de associar as habilidades de consagrado repórter à imensurável paciência do pesquisador, em narrativa fluente e fascinante, sem fugir ao rigor da imparcialidade.

Cumpriu a tarefa, transformando em aliados, os habituais adversários do jornalista: o tempo e o espaço.

A obra segue uma cronologia organizada em três volumes (o segundo será lançado em 2013 e o terceiro, em 2014).

O primeiro vai dos anos da formação de Getúlio à tomada do poder com a revolução de 30; o segundo abrange os quinze anos da era Vargas com ênfase na ditadura do Estado Novo; o terceiro versa sobre a deposição, o “exílio”, a eleição de Getúlio e o fatídico agosto de 1954.

O primeiro volume revela os números da impressionante pesquisa: 24 arquivos\bibliotecas\museus\centro de estudos, acrescidos de 6 arquivos eletrônicos, 354 obras e 41 jornais consultados e mais de 1800 notas de rodapé em 629 páginas.

Ao optar pela imparcialidade, o autor fugiu das armadilhas do historicismo acadêmico e contornou o exercício inconcluso do psicologismo dos personagens biografados.

Fica, pois, a cargo do leitor um vasto campo para reflexões e ampla liberdade para os juízos de valor.

Neste sentido, expressivos sinais podem ser úteis.

Com efeito, o pai, Manuel do Nascimento Vargas, republicano, ex-combatente da guerra do Paraguai, perfeito e acabado oligarca do interior gaúcho, é autor do mais remoto conselho, seguido por Getúlio durante toda existência: “Faça como o Marechal de Ferro [Floriano Peixoto]: confia em todos, desconfiando igualmente”.

De outra parte, Getúlio, ao construir seu longo percurso, encarna a personalidade complexa e contraditória em que conviviam ambivalentes atributos tais como carisma, populismo, paternalismo, autoritarismo e a visão da modernização conservadora, definição paradoxal que se dá ao legado getulista; ao mesmo tempo, sua prática política oscilava entre sabedoria estratégica e esperteza tática, prudência e ousadia, gestos de grandeza e mesquinhez, moralismo e mundanismo, agnosticismo por convicção e devoção por conveniência, oligarca na origem e estadista no destino, enfim, um exemplo de vida intensa e trepidante cujo ato final se consumou com o mais misterioso, enigmático e trágico gesto da natureza humana: o suicídio.

Getúlio por Getúlio é, também, uma fonte esclarecedora.

Proclamou em alto e bom som: “Vencer é adaptar-se” o que, para ele, era “tomar a coloração do ambiente para melhor lutar”.

A esta inteira concessão ao mimetismo, Getúlio agregava o tempo como aliado da ação política.

Jamais fez, jamais faria a hora: esperava acontecer.

Enquanto o tempo e as circunstâncias não o favorecessem, ensinava, “o melhor era esperar” pacientemente.

Diante de decisões iminentes e cruciais, a frieza glacial de Getúlio, levava ao desespero fiéis aliados e circunstanciais adversários.

Para Getúlio ninguém era tão amigo que não pudesse virar inimigo; ninguém era tão inimigo que não pudesse se converter em amigo (fato histórico emblemático: a Revolução de 30 quando lutou ao lado do inimigo histórico Assis Brasil contra o Presidente Washington Luís de quem fora ministro da fazenda e “leal” seguidor).

Daí dizer-se que Getúlio inaugurou a arte de tirar as meias sem descalçar os sapatos.

Outro aspecto fundamental da obra biográfica é a reconstituição do ambiente histórico que liga os personagens Getúlio, o Rio Grande do Sul e o Brasil.

Getúlio, um são-borjense dividido pela fratura de dois mundos que sempre separou os gaúchos; contemporâneo da violência das disputas regionalistas, Getúlio foi, curiosamente, um conciliador vocacional que chegou ao poder por diferentes caminhos, a ruptura revolucionária, a força da ditadura e o voto popular; e o Brasil, país aprisionado por um pacto perverso de um sistema político viciado em fraude e na excludência do povo, o mesmo povo, que assistiu “bestializado” à proclamação da República.

Getúlio serviu-se do atraso, mas deixou marcas transformadoras do despotismo esclarecido.

Getúlio não podia ser outra coisa senão produto e seguidor do “getulismo”, doutrina personalíssima, antiliberal, que misturava um positivismo mitigado com chimarrão, flertou com o fascismo italiano e celebrou um casamento indissolúvel com o pragmatismo.

E assim passou para a história um personagem que manteve nos lábios o sorriso matreiro, indecifrável que compunha o retrato da bonomia ainda que despertando amor e ódio de um país adorador de mitos, entre eles, o mito do ditador/presidente.