Por Roberto Ghione, especial para o Blog de Jamildo Dona de casa insatisfeita, com filhos adolescentes; crianças brincando em quadra de edifício residencial e entre automóveis estacionados na garagem; corretor imobiliário (descendente de família que viveu tempos melhores) apaixonado por mulher aparentemente insegura; adolescentes na descoberta do amor; empregadas domésticas representantes de uma tradição de servidão; familiar da empregada feliz por acessar ao emprego formalizado; flanelinhas, trambiqueiros, entregadores e personagens de rua; homem que resiste em morar em casa sem grades; vigias de rua; imigrantes vindos do interior decadente em busca de tempos melhores; favelado tentando a sobrevivência; senhor de engenho em declínio; familiares do senhor de engenho que tentam perdurar poderes e benefícios extintos, mas que ainda persistem nas consciências de opressores e oprimidos…

O filme de Kleber Mendonça Filho O som ao redor retrata fielmente a classe média de Recife.

Os personagens habitam sem pena e sem glória uma cidade reclusa e fechada, em espaços insignificantes como as próprias vidas, como a própria cidade.

Os edifícios fechados e defensivos, as casas que ainda resistem à especulação imobiliária, o destino de morar trancado em apartamento, as decorações cafonas, os edifícios caixão, as ruas lotadas de carros durante o dia, desertas e inóspitas às noites refletem vivências cotidianas entediadas e sem graça, temerosas e inseguras, só quebradas pela manifestação de algum habitante de rua que oferece algumas faíscas de criatividade e humor popular, cada dia mais abafadas por uma sociedade careta e formalista.

A cidade determina os comportamentos dos habitantes, que modelam o caráter social em função dos espaços que ela oferece.

E a oferta é triste: o Recife dos bairros novos, visualizado na tela grande, é menos estimulante que na realidade.

As diferenças entre a cidade antiga (nunca mostrada no filme) e a nova são abismais.

Resulta difícil imaginar que um povo morando nessas condições tenha a criatividade e a explosão do carnaval.

Ou talvez essa explosão seja a reação a tanta rotina e irrelevância.

Ou talvez seja manifestação dos bairros populares, com habitantes mais felizes que os da cidade da especulação imobiliária.

Um episódio de reunião de condomínio revela a mediocridade e futilidade que determina a vida desses personagens, recriados da própria realidade.

O filme só transcorre, em diferentes situações de vida dos personagens.

Aponta sutilmente a cultura ultrapassada e persistente de senhores e servos, as rotinas de mandar e obedecer, de determinar ou cumprir resignado o destino traçado por uma sociedade que vive o Século XXI atrelada a conceitos e poderes de tempos passados.

Não tem narração explícita.

Ele se desenvolve em enredos paralelos, realismos que identificam os moradores da cidade, entre os que se destacam o amor sem final feliz do corretor imobiliário e sua moça, a obsessão (e insatisfação) da mãe que não consegue dormir por causa dos latidos do cão do vizinho e a “invasão” dos vigias que se intrometem na vida dos vizinhos de uma rua.

O final, a vingança de um fato antigo, rebarbas de uma época de coronelismo que ainda perdura, retrata um desenlace tão banal quanto as vivências e arquiteturas exibidas.

O som da morte é o mesmo som da festa.

Tudo se mistura e confunde atrás das grades da vida cotidiana: a violência implícita, a especulação, o consumismo, o medo, o tédio, o racismo, as ameaças, a inveja, a arrogância, a delinquência.

Poucas manifestações de felicidade, muito estresse de uma vida pouco merecida nos espaços desolados e pouco estimulantes que oferece a cidade ao redor.

Roberto Ghione é arquiteto e diretor do IAB/PE www.vprgarquitetura.com.br