Por Noelia Brito, especial para o Blog de Jamildo Alguns municípios pernambucanos têm instalado camarotes especiais destinados às pessoas com deficiências, durante festejos de massa, como é o caso das folias de Momo.
São os camarotes da acessibilidade.
Para utilizá-los, o cidadão deve fazer uma inscrição prévia, podendo, entretanto, fazer o cadastro na hora, mediante a comprovação da deficiência.
Recife é uma das cidades que já fornece esse tipo de serviço, iniciativa bastante louvável, diga-se de passagem.
Ocorre, porém, que não é suficiente garantir a existência de um lugar para assistir a esses eventos se não for garantida, também, uma maneira das pessoas com deficiências se deslocarem até esses espaços.
Fundamental, também, que os que trabalham na segurança e na organização desses eventos sejam treinados e capacitados para lidar com o público em geral e com as pessoas que apresentem necessidades especiais, em particular.
Ontem, infelizmente, não foi isso que testemunhei durante a apresentação da cantora Alcione, no Marco Zero, na entrada da Central do Carnaval, montada pela Prefeitura do Recife.
Passava já, das duas horas da manhã, quando um rapaz cadeirante e seu acompanhante solicitaram gentilmente aos seguranças que guardavam a entrada da passagem por detrás do palco, onde a todo instante, pessoas portando pulseirinhas brancas, transitavam livremente e por onde o governador, o prefeito, secretários e seu séquito também transitavam vindos dos camarotes da Central do Carnaval, para que lhes permitissem por ali atravessar, para, tão somente, chegarem ao outro lado do Marco Zero, onde estava o Camarote da Acessibilidade, pois seguir pelo meio da multidão, em pleno show de Alcione, seria impossível.
Os porteiros, que ali estavam com coletes da empresa Proative Engenharia e Serviços Ltda., sem qualquer crachá de identificação, entraram em contato com um indivíduo de nome “Zé Elias”, supostamente o supervisor da segurança do evento que vetou a solicitação do rapaz cadeirante.
Os populares ali presentes começaram então a ponderar sobre o absurdo da negativa e começou a se formar uma pequena confusão, quando dois guardas municipais, solidários e conscientes do absurdo que era pretender que o rapaz enfrentasse a multidão, para chegar ao tal camarote da acessibilidade, prontificaram-se a escoltá-lo, a ele e a seu acompanhante, até o outro lado, de modo a garantir que não usufruiriam das benesses garantidas somente aos amigos do rei, portadores das tais pulseirinhas.
Nem assim, nem com escolta da Guarda Municipal, o cadeirante pode adentrar na área VIP, para poder chegar ao tão propagandeado camarote da acessibilidade, pois segundo o “preparadíssimo” segurança da empresa terceirizada Proative, se quisesse “que tivesse chegado às dez horas da manhã”.
Isso mesmo!
Ainda tivemos que ouvir esse despautério!
Dois jovens que viram o ocorrido e que portavam as tais pulseiras brancas, onde se lia “Eu amo Recife”, mas que deveria também incluir, “mas não o recifense”, também se indignaram e retiraram suas pulseirinhas e pregaram-nas nos pulsos do rapaz cadeirante e de seu acompanhante dizendo: “- Quer dizer que o problema todo é uma pulseirinha?
Pois pronto, agora eles podem passar.” E, então, só aí, com as pulseirinhas e ainda escoltados pelos guardas, os dois conseguiram a “servidão de passagem” pela área VIP da prefeitura do Recife, da Central do Carnaval até o Camarote da Acessibilidade.
Não poderia, evidentemente, depois de presenciar o que presenciei, deixar de utilizar o espaço que tão generosamente me é franqueado, todas as semanas, pelo Blog de Jamildo, para denunciar algo tão grave, quanto o desrespeito às pessoas deficientes, ainda mais quando se vê a utilização de um serviço criado para elas, como o camarote da Acessibilidade, sendo utilizado como elemento de marketing governamental, quando esse serviço sequer é prestado a contento.
Pois muito bem, nem vou me aprofundar no debate sobre a existência desses camarotes, para VIPs, em eventos totalmente custeados pelo dinheiro público, nos quais não se sabe quais seriam os critérios do “apartheid”, já que a impessoalidade é princípio da Administração pública.
Entretanto, uma coisa é certa: a existência dos camarotes da acessibilidade é plenamente justificável, à luz do princípio constitucional da isonomia, que manda, mediante ações afirmativas, modular as diferenças.
Percebe-se, porém, que no caso concreto, aqui narrado, a existência e a supervalorização dos camarotes dos VIPs que, por sua vez, a meu juízo, afronta o princípio da isonomia, acabou por tornar sem efeito, o cumprimento, pela Prefeitura, de tão salutar e desejável princípio, pois, para que o camarote VIP se mantivesse indevassável à presença do povo, nem que fosse só de passagem, inviabilizaria-se o uso do camarote da acessibilidade, o que só não ocorreu pela intercessão de dois VIPs de bom coração.
Além desse fato, que por si só já merece séria reflexão de nossa parte que pagamos a festa e dos organizadores que trabalham para nós, cidadãos, chama-nos, ainda, a atenção, de modo muito especial, a contratação dessas empresas de segurança privada, a custos altíssimos, quando se tem servidores públicos qualificados e muito mais qualificados que aqueles, é bom que se diga, com funções institucionais para o serviço.
A quem isso realmente interessa?
Instigada pelo ocorrido, logo cedo, consultei o Diário Oficial para saber quanto essa empresa Proative estaria recebendo do povo do Recife, ou seja, de todos nós, inclusive do rapaz cadeirante “barrado na Disneylandia” e me espantei ao saber que só para fazer o que fez ontem, ou seja, exercer “severa fiscalização e controle de pessoas não autorizadas ao acesso das estruturas locadas, como: palcos, camarins, camarotes, área de produção” está recebendo, nada menos, que R$ 1.300.000,00, através do contrato nº 686/2012, firmado em 07 de agosto de 2012, mas que, estranhamente, só foi publicado, no Diário Oficial agora, no último dia 15 de janeiro de 2013. É espantoso que essa empresa, como visto, tenha mais autoridade sobre locais públicos do que a própria Guarda Municipal, porque mesmo com os Guardas se dispondo a conduzir os dois rapazes até o camarote da acessibilidade, sua autoridade institucional que é atribuída por força de lei e de concurso público, que os investiu em cargos, também públicos, isso não foi suficiente para se sobrepor a dos portadores de coletes da empresa terceirizada que, sequer, repita-se, portavam qualquer crachá de identificação.
Grave, para não dizer gravíssimo, é que se deixa de utilizar os serviços do próprio Poder Público para usar serviços terceirizados, mesmo quando aqueles estão muito mais preparados para lidar com o público porque, inclusive, recebem treinamento e ingressam por concurso, além de trabalharem com a devida identificação, o que possibilita punir eventuais excessos, sem embargo do fato de que a culpa pelo episódio de ontem é, precipuamente, de quem colocou pessoas despreparadas para trabalhar no evento, pois tinha dever contratual, imagino eu, de prestar serviço adequado e com pessoal qualificado.
Esperamos que esses fatos e práticas deploráveis sejam apenas mais uma das heranças malditas herdadas da gestão anterior e que a nova gestão não seja apenas movida por encenações de marketing, mas de ações efetivas que realmente mudem, para melhor, a vida de nosso povo, porque não basta amar o Recife, é preciso, acima de tudo, amar o recifense.
Noelia Brito é advogada e procuradora do Município do Recife