Por Adriana Rocha de H.
Coutinho Em uma democracia é natural, e plenamente admissível, que divergências entre os Poderes do Estado mobilizem a atenção pública.
Inevitavelmente um conflito dessa natureza provocará, mais uma vez, a interpretação do princípio e fundamento republicano estabelecido no art. 2º da Constituição, e que acompanha, através dos últimos séculos, a construção do modelo constitucional de Estado: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”.
Recentemente, causou impacto a afirmação categórica do Ministro do Supremo Tribunal, Joaquim Barbosa, de que “no Brasil, qualquer assunto, qualquer assunto que tenha natureza constitucional, uma vez judicializado, a palavra final é do Supremo Tribunal Federal (…)”.
De fato a legitimidade do STF para dispor sobre a análise de inconstitucionalidade de qualquer ato normativo, inclusive de normas da própria Constituição, é mais do que conhecida e propagada por todos, juristas ou não.
No caso em questão, a “palavra final” é sobre a perda de mandato dos parlamentares condenados no processo batizado de “mensalão”, já que o art. 55 da Constituição Federal, claramente fala em “decisão” da Casa respectiva, por maioria absoluta (assegurando ainda a ampla defesa).
Esse dispositivo garante ao Legislativo, autonomia e independência frente aos demais Poderes.
Em tempos de perseguição política e de autoritarismo estatal, a garantia de que apenas por processo interno um membro do parlamento possa perder seu mandato, mesmo após condenação judicial, é uma das traduções possíveis para, a valor democrático, determinar que a vontade política emanada do povo deve ser respeitada.
Apesar de não ter sido essa a tese vencedora em dezembro passado, quando o próprio STF fixou (sem unanimidade) o entendimento de que a perda de direitos políticos por sentença transitada em julgado (art. 15 da CF) conduz à perda imediata do mandato parlamentar dos Deputados Federais, já julgados e condenados, não podemos simplesmente ignorar a letra do texto constitucional.
Interpretar considerando o sistema de normas e não apenas uma regra isoladamente, é poder reconhecer que as regras especiais sobrepõem-se ao regramento geral, permitindo na prática que ambas ganhem efetividade.
Assim, tanto a perda dos direitos políticos por sentença transitada em julgado será aplicada em muitos casos, atingindo sua pretensão normativa, como o art. 55, §2º, poderá ser direcionado e igualmente aplicado aos detentores de mandato parlamentar, mandato esse, nunca é demais lembrar, obtido por eleição democrática e constitucional.
O caminho escolhido pelo Supremo, mesmo que aparentemente respaldado pela opinião pública, e ontem apoiado publicamente pelo próprio Presidente da Câmara dos Deputados, o que inegavelmente em uma democracia tem muito valor, abre um precedente perigoso: é possível que a Constituição textualmente afirme, e que a força dessa afirmação seja simplesmente ignorada?
Ou de outro modo, existem normas constitucionais inúteis, ou imprestáveis?
E se o argumento for o de antagonismo entre as normas aqui mencionadas, então existe hierarquia entre elas e surpreendentemente o STF nunca havia apontado tal choque, aparentemente intransponível. É compreensível que qualquer discussão que envolva privilégio para parlamentares, cause repulsa e desconforto para muitos, mas a responsabilidade pela composição do Congresso é de todos nós e essa repulsa não é um argumento legítimo para autorizar o STF a romper os limites necessários para o equilíbrio entre as funções do Estado.
A autoridade do STF, de todos os seus Ministros, e especialmente de seu Presidente, é fixada pela Constituição Federal, assim como a autoridade do Presidente ou da Presidenta da República, e igualmente dos Presidentes da Câmara e do Senado.
Sem a tripartição dos poderes retomamos à discussão sobre o exercício e o controle das funções estatais.
Outros modelos existem.
Se agora estamos interessados, então façamos uma nova Constituição.
Por fim, em nenhum momento expressou-se aqui a defesa de qualquer réu, pois claramente o problema é outro, mais amplo, e que exige reflexão.
Ao Ministro Joaquim Barbosa, com todo o respeito que merece, fica a curiosidade sobre uma possível resposta: o STF cabe na Constituição, ou é a Constituição que precisa encolher para caber no STF?
Adriana Rocha de H.
Coutinho é vice-presidente da OAB-PE e professora de Direito Constitucional.