Por Pedro Brandão, especial para o Blog de Jamildo “Há muros que separam nações, há muros que dividem pobres e ricos.

Mas não há hoje no mundo muro que separe os que têm medo dos que não têm medo”(Mia Couto) O Som ao redor foi um filme especialmente perturbador não só para mim, tenho certeza, mas para uma legião de pessoas da maior menor cidade do mundo.

Primeiro, porque somos recifenses.

Segundo, porque somos da classe média.

Terceiro, porque somos brasileiros, nordestinos e latino-americanos.

Quarto, porque as mesmas cercas que cercam o filme, um dia nos cercaram (e ainda nos cercam), assim como os sons ao redor, insistentemente, perseveram em perseguir nossas memórias.

O som ao redor expõe o drama social de uma cidade que se cerca de paredes, muros, grades e seguranças.

E que acaba por cerca-se de si mesmo. É o limite das experiências e vivências que o medo colocou em todos nós.

Mas não é medo inocente.

O medo que a classe média sofre, ela devolve (ou produz) de forma muito mais violenta com suas silenciosas exclusões cotidiana. É o medo que também produzimos – e esse é o grande mérito do filme.

E talvez o “O som ao redor” nem seja tão grandioso assim.

Grandioso é a realidade que ele retrata.

Quando o filme se funde com nossas experiências, com nosso cotidiano, com nossas vivências, torna-se algo especialmente inquietante.

São os resquícios coloniais que teimam em participar da nossa realidade, que se misturam no filme entre as imagens da casa grande e da senzala, do quarto do patrão e da empregada.

E isso não é apenas uma crítica à classe média brasileira.

Vai muito além, é uma crítica à formação social colonial do brasileiro: dos que se acostumaram a mandar, e daqueles que se acostumaram a obedecer.

São banhos de sangue metaforicamente entendidos: sim, nos banhamos em sangue cotidianamente.

Para os que não perceberam a metáfora, o dispositivo de normalização da classe média funcionou perfeitamente bem: será apenas mais um filme que retrata um bairro de classe média e suas loucuras ocasionais.

Para os que perceberam: um fiel retrato de uma sociedade colonial, exposta até as vísceras, segregada e fragmentada – um soco no estômago e uma forte sensação de incômodo.

Poderia ter sido em outro lugar.

Recife foi apenas uma metáfora para qualquer grande centro urbano do Brasil e de várias cidades dos países periféricos do mundo (com certas variações, claro).

Boaventura explica que a nova cartografia social em espaços urbanos cria os “castelos neofeudais”, divididos em zonas selvagens e zonas civilizadas – em que as primeiras são constantemente ameaças pelas segundas – onde são construídas as cidades privadas, condomínios fechados, que reverberam nas relações sociais, econômicas, políticas e culturais.

Só que os nossos castelos neofeudais foram construídos em vigas de alfinetes.

Tão leves e soltos que basta um toque para desmoronar.

Tão fluída quanto o amor de João e de Sofia, que se alternam em cenas de romance e sexo com pouco compromisso.

E não há segurança que segure o medo de desmoronamento.

Por sinal, ao longo do filme, um texto do moçambicano Mia Couto me veio à cabeça quase que constantemente: “Murar o medo”.

Não tenho dúvidas de que, para romper com a geografia e arquitetura do medo, com os castelos neofeudais, com os prédios da Moura Dubeux e suas representações de exclusão, com o encastelamento nos shoppings da cidade (em que as crianças encontram sua diversão nos templos de consumo), Mia Couto diria para Clodoaldo, sem nenhuma chance de convencimento, e para seus filhos e netos (com alguma chance de convencimento, é verdade): “Eis o que nos dizem: para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais prisões, mais segurança privada e menos privacidade.

Para enfrentar as ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a suspensão temporária da nossa cidadania.

Todos sabemos que o caminho verdadeiro tem que ser outro.

Todos sabemos que esse outro caminho começaria pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e do outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.” A última frase do filme não poderia ter sido outra: Tudo por causa de uma cerca.

Diríamos: Tudo por causa de tantas cercas.

Mestrando em Direito - Programa de Pós-graduação em Direito/UFPE Membro da Comissão de Estudos Constitucionais - OAB/PE