Por Diogo Santos, cofundador do Instituto Apolo em Defesa da Vida e da Saúde (IADV) Ao mesmo tempo em que foi promulgada a Constituição Brasileira de 1988 - cujo teor prescrevia o direito universal de acesso à saúde pública, integral e gratuita - expandiu-se no País, em um movimento contraproducente ao que estava disposto na Carta Magna, o setor empresarial de saúde suplementar, impulsionado por entidades pautadas por práticas estritamente comerciais, alheias à natureza do serviço prestado e às necessidades dos pacientes que, atualmente, representam mais de um quarto da população.
Dentre os inúmeros fatores que contribuíram para o irrefreável crescimento deste setor, a incapacidade estatal de oferecer serviços de saúde e infraestrutura de qualidade figura dentre as justificativas mais utilizadas pela busca de uma suposta “proteção” da iniciativa privada, sob a expectativa de receber um tratamento de qualidade em face dos riscos futuros e incertos a que estão sujeitos os usuários e seus familiares.
No entanto, diversos dados acerca da prática cotidiana das operadoras de planos de saúde revelam que, em verdade, milhares de consumidores destes serviços se submetem, inesperada e injustificadamente, a circunstâncias em que são completamente abandonados por estas empresas, notadamente quando necessitam de tratamentos e medicamentos de alto custo.
De acordo com estudos realizados pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), coordenados pelo pesquisador Mário Scheffer, referida conduta foi constatada empiricamente, observando-se, através da análise de 782 processos judiciais ajuizados entre 2009 e 2010, que os procedimentos mais negados pelas operadoras correspondem àqueles que mais oneram os cofres das empresas, em especial a quimioterapia e a radioterapia, ambos tratamentos de combate ao câncer.
Diariamente, diversos procedimentos, medicamentos, materiais cirúrgicos e ambulatoriais, exames e internações - todos requisitados pelos médicos assistentes em face das necessidades dos pacientes - são indevidamente desautorizados pelas operadoras de planos de saúde, obrigando os usuários ao imediato pagamento dos custos necessários à manutenção da própria vida, ou, quando imersos em circunstâncias financeiras que assim não o permitam, precisam buscar soluções administrativas junto à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) que podem se arrastar por meses, ou mesmo soluções judiciais, significativamente mais céleres e efetivas, porém mais dispendiosas.
Entretanto, através de recente pesquisa realizada pelo instituto Datafolha, constatou-se que cerca de 77% dos usuários dos planos de saúde que se utilizaram dos serviços das operadoras nos últimos 24 meses tiveram diversos problemas no acesso aos serviços; dos quais apenas 1% promoveram medidas judiciais exigindo a adequação da conduta das operadoras aos ditames legais, enquanto 0,4% apresentaram queixas junto à ANS.
Percebe-se, assim, que as práticas ilícitas realizadas pelos planos de saúde, furtando-se do devido cumprimento das determinações legais e contratuais, mostram-se mais lucrativas do que o estrito cumprimento da lei, uma vez que os valores não desembolsados em favor dos procedimentos, medicamentos e materiais requisitados pelos usuários são significativamente menores do que os prejuízos suportados em virtude das pouco numerosas demandas administrativas e judiciais, estimulando o desrespeito à legislação e revelando métodos essencialmente capitalistas aplicados em um setor social de primordial relevância, sobrelevando-se o lucro em desfavor de vidas.
E ainda, esta “regulação” aplicada pelas operadoras não se restringe aos pacientes, alcançando, com mais intensidade, a autonomia médica, disciplinada por ferramentas como a “matriz de desempenho”, índice que mede o grau de solicitação de exames e procedimentos pelo profissional, comparando-se seu “custo agregado” para direcionar clientela (pacientes) apenas para os médicos que sejam “mais baratos para a empresa”.
Pior, algumas operadoras trabalham com o conceito de “consulta bonificada”, pagando mais para o médico que gasta menos com exames e procedimentos, estimulando, nitidamente, o subtratamento do paciente, para com isso ampliar os lucros, mesmo que em detrimento da vida e da saúde dos usuários.
Infelizmente, estes métodos absurdos foram constatados e narrados pela própria ANS, justamente o órgão que deveria regulamentar este setor, através do pouco comentado (apesar de muito bem confeccionado) artigo “Duas faces da mesma moeda – Microrregulação e Modelos Assistenciais na Saúde Suplementar”, segundo o qual “nenhum médico vinculado a operadoras dispõem de plena autonomia quando se trata de indicar procedimentos que onerem as empresas”.
Desta forma, tem-se de um lado um produto que figura enquanto segundo maior objeto de desejo dos brasileiros (de acordo com pesquisa do Instituto Datafolha) – superando o desejo por carros, seguros de vida, eletrodomésticos e computadores; e de outro, um crescimento desordenado de um setor desprovido de limites regulatórios que a própria Constituição determinou que fossem fixados, caminhando constantemente contra as leis apenas porque é mais lucrativo, promovendo riscos diários à vida e a saúde de mais de 47 milhões de usuários.
As perspectivas futuras apontam para um aprofundamento das raízes sob as quais foi construída esta realidade, pois a manutenção desta sistemática implica em um necessário e progressivo fortalecimento financeiro das operadoras (nitidamente vivenciado atualmente) e uma proporcional fragilização (igualmente evidente) do sistema público de saúde, ainda porque o Estado, que deveria defender e aprimorar o SUS, acaba de ingressar neste jogo indigesto, com o lançamento dos planos de saúde pela Caixa Econômica Federal no final de 2011.
Se o próprio Estado, através do Grupo Caixa Seguros, preconiza e tenta lucrar com a incapacidade do sistema público e universal de saúde, e ainda se mantém inerte em face dos abusos gritantes protagonizados pelas operadoras em detrimento de médicos e pacientes, especialmente em face das correlações políticas que compõem grande parte (senão todos) os cargos de gestão da ANS, percebe-se que inexiste um cenário favorável à “moralização” sistêmica do setor, pois as forças estatais que poderiam cessar esta bonança vil e inescrupulosa são facilmente envolvidas pelas mesmas.
Apenas uma modificação estrutural (diga-se: financeira) da lógica empresarial adotada por estas entidades poderia afastar os perigos desta realidade, objetivo alcançado de forma tênue e imperceptível pelo Poder Judiciário, mas que poderia ser fortalecida por uma aliança envolvendo essencialmente pacientes, juristas e profissionais da saúde, pois instruções jurídicas básicas são suficientes para verificar os abusos cotidianos destas entidades.
Assim, desconstruindo a lógica ilícita e lucrativa que justificou ganhos de mais de R$ 1,4 bilhões de reais nos primeiros quatro meses deste ano (2012), a aplicação igualmente massificada da legislação pelo Poder Judiciário, cujo comportamento usual não se aproxima dos interesses das operadoras, poderia reprimir o crescimento deste gigantesco câncer social, cujo principal sintoma é a supressão de serviços de saúde de qualidade para toda a população (rica e pobre), pois além de fragilizar o sistema público de saúde, move-se por uma voracidade mercadológica que o torna incapaz de atender as expectativas e necessidades dos próprios usuários que se veem obrigados a aderir aos seus serviços.