Foto: internet Por Miguel Rios, da coluna O papo é pop, do NE10 Como Salve Jorge está meio sem boa audiência, como o enredo não agradou, como o povo nem comenta, como Glória Perez insiste em nos ensinar sobre culturas estrangeiras quando queremos histórias nossas, porque aqui pelo Brasil não faltam gente interessante e diversidade, a sugestão para a autora é parar de ir na Cochinchina atrás de tipos humanos e olhar mais perto.
Para Pernambuco.
Aqui tem tudo e mais um pouco para render boa novela.
Podia ser uma novela com núcleo no Morro da Conceição.
A classe trabalhadora recifense precisa ser mostrada, assim como a do Complexo do Alemão é.
O simpático vendedor de fitinhas, a alvoroçada dona do boteco com a melhor Cabidela da comunidade, o animado desbocado que faz bicos oferecendo santinhas aos fiéis.
Podia haver os ricaços deslumbrados de Boa Viagem, que adoram provar que têm dinheiro, glamour e sofisticação a cada grife consumida e divulgada.
Podia haver a classe alta, aquela das Graças a Apipucos, que se orgulha de destilar intelectualidade, sofisticação e apoio ao povo, mas que só entra em contato com o povo quando ele veste uniforme e na área de serviço.
Podia ter um mocinho vendedor de CDs e DVDs lá da Rua 7 de Setembro, na porta das Lojas Americanas, que teria embates frequentes com a Prefeitura, a Polícia Federal, as críticas da imprensa e os movimentos de urbanização da cidade.
Um cara sem muita sorte, sem perspectivas, que precisa se sustentar com o pouco que ganha da contravenção.
No primeiro capítulo, ele se meteria em um carreira danada por dentro da Marisa, causando pânico nas clientes, derrubando manequins, arrastando sutiãs, calcinhas e derrubando o tabuleiro com toda a coleção da saga Crepúsculo.
Podia ter uma mocinha estudante de Arquitetura do Centro de Artes e Comunicação da UFPE.
Meio cabeça, meio cliente das butiques da Av. 17 de Agosto.
Militante, envolvida em direitos urbanos, em todos os #ocupe… da vida, ela e sua turma, amigos-personagens de poucas falas, viveriam em busca de solucionar a questão: como organizar o caos que é o Recife.
Atrás de uma fórmula para que todos sejam felizes, andem com seus carros financiados em 60 vezes no carnê, em transporte público digno, caminhem em calçadas sem buracos, arborizadas, sem trombar em camelôs.
Tudo o que um recifense sonha quando está no engarrafamento ou andando sob o sol da Av.
Conde da Boa Vista.
O casal podia se encontrar na delegacia.
Ele preso pela venda de produtos piratas.
Ela detida por desacato a autoridade durante passeata.
Nasce o amor.
Amor que vai esbarrar no preconceito da família de sobrenome da moça, tipo Coelho Medeiros da Fonseca Nery.
Família daquelas que almoça no Restaurante Leite e faz caminhadas no Parque da Jaqueira.
Amor também ameaçado pela insistência dele em continuar no crime, na balbúrdia, tumultuando a cidade que ela tanto quer ordenar.
Melhor: o casal podia se encontrar no baile do I Love Cafusú.
Ela achando ter curtido rapaz de mesmo nível social, que só estava fantasiado de entregador de água mineral Indaiá.
Ele, que ganhou um convite no sorteio da Rádio Jornal, pediu emprestado o macacão do vizinho, pôs um garrafão nas costas, querendo pagar de bacana na mais autêntica prévia carnavalesca “do faz de conta que eu sou/amo/homenageio as classes C e D”.
Nasce o amor.
Amor que começa com engodo, que aumenta, mas vive ameaçado pelo perigo do flagrante.
A cada música de Otto que ela canta e ele não sabe do que se trata.
A cada filme de Kléber Mendonça Filho do qual ele nunca ouviu falar.
A cada vontade que ele tem de comentar sobre o show de Tiaguinho, no Clube Português, mas se controla.
A cada tentativa de esconder a etiqueta Lion do jeans comprado na Rua das Calçadas.
Amor que tem sua crise ápice quando ela vai com sua turma de elenco de apoio estudar in loco o centro da capital e dá de cara com ele dando garantia de qualidade ao CD de Roberto Carlos.
Não tem mais como esconder: “É.
Esse cara sou eu”. É claro, tem que haver a periguete, que por aqui se chama xamboqueira, fã de MC Sheldon e de João do Morro, funcionária da seção de metais e louças sanitárias em loja de material de construção da Avenida Norte, que é afim do nosso herói e não vai abrir guarda para a heroína.
Muitos planos malignos.
Armar para a rival ser apanhada com loló na bolsa na Rua da Moeda ou para ela ver o galã, após estrategicamente embriagado por Pitú-Cola batizada, seduzido e dando uns bons amassos no Bloco do Oiti.
Promete o triângulo amoroso.
E a grande vilã da história.
A avó tradicionalíssima da jovem.
A grande fornecedora de doces para todos os grandes eventos finos e fofos da cidade.
Cheia de contatos com o high society, com pavor de escândalos, que não usa roupas com preço menor a três dígitos, com casa em Serrambi e chácara em Gravatá, que quer a neta decorando coberturas com sofás de R$ 15 mil e não urbanizando a favela do Entra a Pulso.
Sem desconfiar que sua melhor funcionária na doceria é a avó do rapaz que está desencaminhando sua neta do casamento com um herdeiro de usina.
Até descobrir, até começar a maltratar, certa de que seu passado sigiloso de um filho enjeitado que hoje é líder comunitário, politizado e resistente, em Brasília Teimosa, está seguro.
A avó da moça não sabe é que a avó do moço, devota de vestir azul e branco, de carregar vela do tamanho dela por Nossa Senhora da Conceição, mas também de jogar alfazema no mar como boa filha de Iemanjá, e leoa protetora dos seus, sabe do segredo.
Climão previsto entre as duas.
Podia ter o núcleo lúdico.
Uma galera olindense lutando para manter viva a tradição de um bloco carnavalesco que pena para conseguir recursos para mais um desfile nas ladeiras, sem muito sucesso, beirando quase a desistência.
Podia ter o núcleo polêmico.
Outro pessoal, ali do Amparo, ali de Maracaípe, de muitos lugares enfim, gente bem com a vida, da arte e da labuta, cabeludos ou não, regueiros ou não, brigando pela legalização da maconha.
O núcleo humorístico, para dar leveza, com os não ricos de Boa Viagem.
O ambulante de caldinho com seu grito característico: “Caldinhôôôôô!.
Peixe, camarão e feijãããããooo!”.
O vendedor de abacaxi com sua técnica impressionante de descascamento em menos de um minuto.
O abusado e briguento dono da barraca de praia mais simples que tem que competir com o empresário que abriu uma com DJ.
A garota de programa bailista e viciada em biscoito Treloso da Conselheiro Aguiar.
O passador de bicho da Aval, bregueiro, saradinho, safo e sorridente, alegria do térreo do Holliday, que sonha em ser dançarino do Calypso.
O ex-surfista que busca um plano infalível, tipo os de Cebolinha, para afastar os tubarões.
Gente batalhadora, sofrida, perseguida, mas que não perde a alegria de viver.
Pode ter até o núcleo gay.
Bairro da Boa Vista bombando.
A boate popular concorrendo com a rica, sendo desmerecida e vice-versa.
O elitismo de parte do meio LGBT mostrando o carão.
O frequentador da casa A sem nunca admitir que já foi à casa B para não perder status com os amigos esnobes.
Mas aí se apaixona pelo garoto iniciante, confuso e suburbano que conheceu lá na outra, a qual não se pode pronunciar o nome.
Como lidar?
O marido enrustido entrando sorrateiro nas saunas e que vive abafando casos.
As travestis da Av.
Mário Melo frente a frente com os evangélicos da mesma área e, aos poucos encontrando o respeito, convivendo.
Pode ter o núcleo dos pernambucanos distantes.
Os que vivem fora da terra.
Cheios de saudades de bolo de rolo.
Daqueles que ligam quase chorosos: “Por favor, quando vier, traga queijo coalho e batida de caju”.
Que vivem postando fotos de cartão postal no Facebook.
E que quando veem visitar mudam o status para “Voltei, Recife!
Foi a saudade que me trouxe pelo braço”.
Muito Reginaldo Rossi, Marrom Brasileiro, Alceu Valença, Almir Rouche, André Rio e Adílson Ramos na trilha sonora, em participações especiais nas externas do Carnaval.
Muito “visse”, “pronto”, “valeu, mô véi”, “mamou”, “peraê, menino!”, “ôxe” e “tá ligado?” ao fim de cada frase.
Muito caldo de cana com bolo de bacia.
Muito merchandising de Kinitos, Bem Te Vi, Cattan e Extra Bom.
Hermila Guedes, Tuca Andrada, Arlete Sales, Bruno Garcia, Virginia Cavendish, Guilherme Berenger e Marco Nanini no elenco.
Dá pra sair a maior novela em linha reta do mundo?
Dá até para passar no Cine São Luiz.
Mas sem colocar todo mundo para dançar frevo rasgado na sala de estar, a cada dez minutos, a cada notícia boa.
Aí não dá. #Escrito com a colaboração criativa dos bróders Paulo Victor Moura, Thaís Gouveia, Mellyna Reis, Daniel Guedes Carvalho e Gustavo Berlamino.