Por Ayrton Maciel* Está chegando ao final, com o restante da dosimetria das penas dos condenados, o mais impactante, espetacular, célebre, desejado e carregado de vindita julgamento da história da Corte Suprema do Brasil, o STF.
Corre pelo canto das bocas a “baba de sangue” de muitos.
Parte movida pela ódio ideológico, parte pela inexistência de formação política que leva à interpretação desfocada ou distorcida dos fatos.
Ou seja, a realidade completa não está em julgamento.
A parte primeira, obviamente, ensandecida por saciar a sede de revanche.
O maior legado do “mensalão” é trazer à tona o que somos.
Negar a graduação dos valores que empregamos ao material e ao imaterial é negar nosso destino, percorrido até hoje.
Porque a história nos pune sempre.
Nas relações históricas das classes sociais brasileiras, o real é que nossa formação valorizou a introspecção da vindita como uma prática de justiça e a consciência de que não somos iguais perante a lei.
Se tenho mais, posso mais.
Daí, a concepção dominante de que a condição que tivermos – a da posse, a da propriedade – é que determina o poder de nos sobrepor ao inimigo pessoal, ao adversário político ou ao inesperado que se ponha no caminho.
Isso está impregnado na Justiça, como exercício, e nas leis como ordem de grandeza e de relação: vida humana/propriedade.
Nossa formação história é a nossa pena condenatória.
Nossos códigos penal e de processo penal traduzem a tradição da Justiça no Brasil.
Ao institucionalizar-se, atingindo todo o território, o fez herdando práticas colonialistas.
A ideia do valor material superior ao imaterial.
As penas para os crimes contra o patrimônio privado ou público têm maior grandeza que as penas para crimes de morte ou atentados contra a vida.
O julgamento dos acusados como mentores e operadores da série de crimes popularizada como “esquema do mensalão” a justiça que se aplica, mas também o que o clamor público prioriza: a dosimetria para as penas de cadeia é mais aclamada que a da obrigação de devolver o que foi desviado, pagando cada qual com o patrimônio que possuir, declarado ou descoberto em nome de outros.
Relembro, sempre que vem à tona um dos escândalos em série no Brasil, um episódio vivido há 18 anos.
A pauta do repórter era conhecer e mostrar as condições de vida e cumprimento de penas nos maiores presídios e penitenciárias de Pernambuco.
Entrevistava detentos, aleatoriamente e os por crimes de impacto.
No dia em que estava no Presídio Aníbal Bruno, local transitório para os ainda sem sentença condenatória, e que a lei determina um prazo para ser julgado, escutava queixas dos que estavam há anos aguardando julgamento, quando um chama a atenção pelo argumento apresentado.
Já era um condenado.
Com instrução mediana, aborda a reportagem: “Dotô, veja a minha situação.
Tô aqui há oito anos.
Minha pena é de 13 anos”.
Qual foi o crime que você cometeu?, perguntei. “Dei um golpe (tentou) na Caixa (Econômica Federal).
Se eu tivesse matado alguém, já tinha saído”, lamentou o rigor, mas também a indiferença da Justiça.
A frase impressiona.
O golpista só queria ir para o regime semi-aberto, em Itamaracá.
Mofava, porém, sem defesa e em meio a um estoque de seres humanos em um presídio, condenado a uma pena que nem a todos os assassinos é aplicada.
Não era prioritário.
Em seu anonimato, quis dizer: “a mão da Justiça pesa mais sobre quem atenta contra a propriedade do que quem tira uma vida”.
Um ano depois, uma nova reportagem responderia, em parte, aquela impressão.
Era uma matéria sobre o cangaço.
Em meio à pesquisa e entrevistas, uma com um pesquisador do fenômeno social do cangaço chamou a atenção, ao fazer a ligação entre a origem do cangaço e o coronelismo, a ausência institucional da Justiça nos sertões e a concepção de justiça das classes dominantes no século 19.
Naquele deserto de esperanças, a lei que vigorava era a da classe dominante, personificada na figura do coronel.
Se um assassino procurava a proteção de um chefe político ou latifundiário local, ao ser levado pelo capataz, a sabatina era curta e comum: “Cabra, você roubou? É ladrão?”, indagava o senhor. “Não, coroné.
Matei um inimigo (ou pela honra ou por vingança)”.
Sendo esta a resposta, a possibilidade de não ser sangrado e passar a servir a aquele senhor aumentava na dosimetria da pena.
Essa herança rude da formação da nação brasileira deve explicar a baba “sanguinolenta” que corre no canto das bocas de muitos que pediram a condenação dos mentores e operadores do “mensalão”, um esquema de crimes em rede - corrupções passiva e ativa, lavagem de dinheiro, fraude fiscal - que em valores não exatos pode ter somado somado R$ 200 ou R$ 300 milhões, segundo as notícias.
A sanha de muitos dos indignados, entretanto, é pela pena de reclusão cumulativa, o desejo de que o mensaleiro mofe na prisão.
Ver devolvido o que foi desviado é secundário, pouco significante.
O principal operador do “mensalão”, o empresário Marcos Valério está condenado a 48 anos de penas acumuladas, mas terá de devolver ao patrimônio público apenas R$ 2,5 milhões.
Igual interpretação está sendo aplicada aos demais integrantes da rede.
O julgamento do esquema do “mensalão” é a sacramentação do valor da propriedade.
Crime contra a propriedade é imperdoável.
Crime contra a vida, pode ser atenuado.
A aplicação das nossas leis nunca obrigam a quem comete crime contra o patrimônio público ou privado a ressarcir na sua integralidade ou até à sua capacidade pessoal completa, e na responsabilidade que lhe cabe.
Por esse viés, ao longo da história do Brasil faltam muitos no Supremo.
Mentor principal do esquema, segundo os autos, José Dirceu e todos os envolvidos fazem parte de um episódio, em um País tão relapso com a vida e tão cuidadoso com a propriedade.
A dimensão desse episódio foi definida pelo jogo de forças políticas.
O alvo maior é o PT.
O partido quebrou os códigos de conduta e todas as expectativas sobre o que não se propunha a repetir no poder.
O discurso e o compromisso antagônicos aos das classes dominantes em 500 anos geraram a sede e a baba que corre nos cantos das bocas de muitos.
O Supremo está sendo exemplar.
Técnico e politicamente correto, e igualmente herdeiro de nossa formação.
Para a parcela ideológica e adversa da opinião pública, foi pouco para Zé Dirceu.
Ele deveria estar condenado a viver ad aeternum de cabeça para baixo, pendurado pelos pés, exposto ao deboche público.
Retomando o lamento do presidiário esquecido no Aníbal Bruno, é de se pensar: “Se Dirceu tivesse matado alguém…”.
Ayrton Maciel é jornalista.