Por Gustavo Krause, especial para o Blog de Jamildo A entrevista do ex-ministro e ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ayres Britto, (edição de 18 de novembro de 2012, Ilustríssima, Folha de São Paulo) revela faces incomuns aos homens do Direito: poeta e filósofo, além de jurista.
Antes de qualquer embargo declaratório, valho-me de medida cautelar: sempre existiram e existirão magistrados, juristas, advogados, professores, versados em filosofia do direito, capazes, também, de pensar sistematicamente sobre as questões existenciais e, nas horas vagas, exercer pendores poéticos.
Entretanto, o que me chamou atenção foi a sólida coexistência em Ayres Britto da criação poética, da elucubração filosófica e da dogmática jurídica.
Na magistral entrevista, a pauta jornalística – o julgamento do mensalão – serviu para que o ilustre entrevistado, sem fugir um milímetro das embaraçosas perguntas, não somente demonstrasse equilíbrio, sabedoria e, ao mesmo tempo, afirmasse o que apropriadamente chama de “mundividência”, temperada pela linguagem das “borboletras”, engenhosa invenção que compõe o título de um dos seus seis livros de poesia, “Varal de Borboletras”.
Decerto, a entrevista, por si só, mereceria minha especial atenção.
No entanto, por coincidência, concluí a leitura do livro “Poesia e Filosofia”, recentemente lançado pela Civilização Brasileira, cujo consagrado autor Antônio Cícero é escritor, filósofo, compositor, poeta, curiosamente um poeta escondido na timidez, felizmente rompida, quando sua irmã, a cantora e compositora Marina Lima, musicou seus poemas.
Antonio Cícero começa afirmando que poesia e filosofia são atividades e ocupações inteiramente diferentes.
E, neste sentido, descreve sua experiência pessoal: “Se eu quiser escrever um ensaio de filosofia basta que me aplique a desenvolver e explicar determinadas ideias.
Desde que eu trabalhe e não desanime, o ensaio ficará pronto mais cedo ou mais tarde.
Não é assim com a poesia.
A poesia é ciumenta e não aparece a menos que eu lhe dedique todo meu espírito, todos os meus recursos, todas as minhas faculdades, sem garantia alguma de que, mesmo fazendo tudo o que ela exige, eu consiga escrever um poema (…) Em mim, quando o filósofo está presente, o poeta não aparece”.
O livro prossegue unindo profundidade e leveza conceitual.
O autor concorda com o senso comum segundo o qual poeta e filósofo têm a “cabeça nas nuvens”; que o mundo contemporâneo encolheu o tempo para produzir e fruir poesia e filosofia; que os poetas “pensam o mundo” e os filósofos “pensam sobre o mundo”, mas que é possível extrair filosofia dos poemas e dá como um dos exemplos o “carpe diem” do poeta latino Horácio que Cícero lê no original versado que é em grego e latim; que, diferente da filosofia, a poesia pode se nutrir da contradição e ilustra citando Walt Whitman “Contradigo-me?
Pois bem, então me contradigo (sou vasto, contenho multidões)”.
Vou parar por aqui, caso contrário, perco o fio da meada que é enxergar em Ayres Britto, o filósofo e o poeta, já que o “notório saber jurídico” do jurista é um dos pré-requisitos da nomeação para Ministro do Supremo Tribunal Federal.
Com efeito, emerge o filósofo quando o entrevistado se autodefine como um contemplativo e explica o conceito: “na contemplação você concilia atenção e descontração (…) eu estou acordado, como quem está atento.
Mas estou descontraído como quem está dormindo”.
Acrescenta o espiritualista ao contemplativo que exercita a meditação e, a partir desta força interior, explica os conflitos no Tribunal: “sem o eclipse do ego, ninguém se ilumina”.
Na conclusão da entrevista, fundem-se imagem poética e reflexão filosófica, quando Ayres Britto avalia sua passagem de nove anos no Supremo: “Em tudo que faço, já não faço questão de ser reconhecido.
O que faço questão é de me reconhecer.
Fui eu mesmo nessas questões.
Não perdi minha essência, minha mundividência.
Eu gravitei em torno de valores que dão sentido, dão grandeza, dão propósito à existência individual e coletiva.
Não perdi a viagem”.
De fato, nós brasileiros é que perdemos um grande companheiro de viagem.