Quando se discute um dos assuntos mais polêmicos da atualidade - as cotas recentemente destinadas a alunos oriundos do sistema público de ensino - argumentos surgem em abundância.
Alguns favoráveis; outros, contrários.
Natural: vivemos em uma democracia, e o livre debate de ideias divergentes constitui uma importante dimensão de sua existência.
Todo argumento, contudo, está sujeito a falhas, principalmente no que tange ao parâmetro escolhido para embasá-lo.
A suposta meritocracia citada pela maioria dos que argumentam contrariamente às cotas é um exemplo desse tipo de erro.
Eis o contexto: um sistema que elege o mérito como método de seleção, mas no qual uma das áreas concorrentes (o sistema público de ensino) apresenta alunos cujos ambientes escolar e familiar, com raríssimas exceções, não lhes passam a importância de valores como competitividade, individualidade e esforço próprio.
Crianças e jovens não aprendem valores espontaneamente.
O ambiente não é determinante, decerto, mas negar sua influência na formação individual é falacioso.
A meritocracia consiste, de fato, em um ótimo mecanismo: nada mais justo do que selecionar os melhores e mais esforçados.
Ocorre que, se não houver condições de competitividade minimamente próximas, ela é deturpada e passa a atuar como um processo seletivo que privilegia apenas um lado concorrente.
Ademais, as condições gerais do ensino público brasileiro são inegavelmente péssimas.
Escolas com infra-estrutura degradante, professores mal preparados e mal pagos e burocratização excessiva são apenas algumas das muitas deficiências observáveis.
Além disso, é contraproducente deixar de qualificar uma quantidade considerável de mão-de-obra que, pelo atual sistema, não consegue entrar em faculdades públicas.
Alunos oriundos da classe média que são reprovados no vestibular para as universidades federais não deixam de seguir rumo à obtenção do diploma.
O contrário, infelizmente, não ocorre: apenas uma parcela irrisória dos estudantes de ensino público reprovados recorre às faculdades particulares e termina uma graduação.
A propósito, pesquisas realizadas pela UFRJ, pela UNERJ e pela UnB comprovam que o desempenho dos cotistas é superior, dentro da faculdade, em relação ao restante dos colegas não beneficiados.
Vale ressalvar que a política de cotas deve ter um horizonte de tempo delimitado, no entanto.
Caso contrário, apenas se perpetuariam outras deficiências, sendo uma das partes indefinidamente privilegiada.
Dimensão extremamente necessária desse ínterim é a aplicação de uma ampla reforma no sistema público de ensino.
Para tanto: estabelecer o mérito tanto na remuneração quanto na preparação dos professores; despolitizar a seleção de cargos concernentes às direções das escolas, buscando sempre os mais capacitados tecnicamente para exercê-los; tornar a gestão do ensino público menos burocratizada e mais eficiente, enfim.
Rodrigo França, Cientista político e sócio da RVD Estratégia.