Ayrton Maciel, do Jornal do Commercio, especial para o Blog de Jamildo “O beijo, amigo, é a véspera do escarro; a mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga, apedreja essa mão vil que te afaga, escarra nessa boca que te beija”.

O verso amargo do poeta Augusto dos Anjos, no poema Versos Íntimos, do livro “Eu”, é uma dose de bílis em um copo cheio de mágoas.

A traição, que, nas palavras do poeta, pode-se interpretar também como deslealdade, ou traduzir-se como a ingratidão, é um ato recorrente.

Na política, extremamente atual.

O que se cuidava de ser exceção - pelo ato menor que denotava, a vergonha que impingia e o caráter individualista de que se impregnava -, o marketing político encarregou-se de maquiar como estratégia.

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Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera.

Somente a Ingratidão - esta pantera - foi tua companheira inseparável!”, sepulta a esperança o poeta em sua descrença.

A traição é, hoje, adjetivo vulgarizado, prática comum.

A política tradiconal brasileira, em sua contemporaneidade, tem inúmeros registros.

Vira e mexe, alguém acusa a outro de traidor.

Na verdade, o é.

Só que o marketing político deu conotação de irrelevância. É um ato menor, portanto, insignificante.

Independentemente do custo.

O marqueteiro diz: “O povo quer é resultado”.

A definição mais restrita e mais clara de traição é agora apenas história.

Então, responda rápido - desconsiderando a dimensão do fato e levando em conta a vulgarização do ato -, qual figura tem maior importância histórica: a traição ou o traidor?

Qual causa maior dano ou risco?

O mais famoso traidor da história do homem mudou o curso da humanidade.

E por 30 moedas.

Ao trair Jesus, seu seguidor Judas Iscariote, com seu gesto e consequência, consolidou os alicerces e a dispersão do Cristianismo como a maior religião da humanidade.

Historicamente, as maiores traições e os grandes traidores da humanidade estão ligados a guerras, dominações, genocídios, tragédias humanas que geraram grandes escritos.

Em Roma, 44 anos antes de Cristo, Marcus Junius Brutus, tornou-se um dos maiores traidores da história.

Comandado por seu pai adotivo, o imperador Júlio César, Brutus - obcecado pelo poder -, aliou-se ao general Cássio para destronar o seu comandante (o pai).

Mais além, participou do plano para matar Júlio César.

Daí, a célebre frase de César ao ser golpeado: “Até tu, Brutus?”.

Acabou suicidando-se, depois de organizar um exército para dominar o Império Romano e ser derrotado por Marco Antônio.

Século 17, Brasil colônia de Portugal, Domingos Fernandes Calabar - um senhor de engenho da Capitania de Pernambuco -, aliou-se aos holandeses e ajudou a Holanda a conquistar e dominar território pernambucano; século 18, no Brasil colônia, Silvério dos Reis - em troca de perdão de dívidas e uma pensão vitalícia da Coroa portuguesa - trai a Inconfidência Mineira e o seu maior líder, Joaquim José da Silva Xavier, Tiradentes, que morreu na forca e ainda teve o corpo esquartejado e exposto em via pública.

Ainda no Século 18, o ministro das Relações Exteriores de Napoleão Bonaparte, Talleyrand-Périgord, abandonou o imperador, articulou a deposição do líder francês e ajudou a restaurar a monarquia.

No século 20, década de 70, em 25 de agosto de 1973, o presidente chileno Salvador Allende é deposto e morto por um golpe liderado pelo general Augusto Pinochet.

Vinte dias antes, Pinochet havia sido escolhido para a chefia do Exército do Chile, por Allende o considerar um dos oficiais mais leais.

Os exemplos históricos são inúmeros.

Uns mais, outros menos importantes.

Deslocando o ato de trair para a política tradicional brasileira, constata-se que a formação, a cultura, os conceitos de um povo, mais os interesses do poder, são influências fundamentais para um gesto de traição.

No Brasil, em particular, ficou tão vulgar trair ou definir uma ingratidão como traição que pode-se perguntar se há importância para merecer registro histórico.

Talvez, um registro de intriga, que durará alguns anos.

Não há como dizer, por aqui, quem traiu ou foi traído.

Brutus não se cria como adotivo.

Na política, o poder é o objetivo, e se não houver limite, haverá obsessão.

Mais fácil será trair.

Bem, na política brasileira, traição é algo que está na cabeça de cada um de nós.

Mas, que existe, existe!