Por Assuero Gomes, médico e escritor Far-te-ei uma carta sem mesuras nem prosopopeias, sem poemas nem rimas perdidas, sem por do sol nem frevo nem maracatu.
Não olharei o Capibaribe com olhos de poeta nem os lampiões que já não há, com coração de seresteiro.
Não invocarei Capiba nem Carlos Pena, nem João Cabral, escreverei com a pena forte, pesada, dessas que denunciam o não feito, mas com uma última e certa leveza para não afogar a esperança nas águas turvas do tinteiro.
Crianças nas ruas, fonte de votos e promessas vãs e fonte de renda para ONGs e adultos infames.
Ruas que não andam, como artérias obstruídas de uma trombose sem fim.
Memória rota, esquecida, como uma cidade vazia.
Um tédio de denunciar o de sempre, como uma merenda repetida à exaustão: educação, saúde, segurança e mobilidade.
Cultura e lazer.
Filhas órfãs do descaso de sempre, da penúria do holofote midiático que brilha com luz falsa por instantes fugidios e que transmite a impressão errônea de que a eternidade de um grande gestor e homem público, é para sempre.
Educação, saúde, segurança, mobilidade, cultura, lazer.
Seis filhas órfãs.
Seis copos de chope vazios.
Seis desejos agredidos.
Seis promessas impagáveis.
Seis olhos cegos e doze destinos vazados.
Prometo que não derramarei romantismos, mas exigirei que ressuscitem coisas perdidas no meu Recife.
Procure nas ruas de nomes poéticos, procure na casa do avô de Manuel Bandeira, no velório de Alcides, no Recife Antigo depredado, nos esgotos de crack, nas carnificinas e nos ambulatórios e no grito inaudível da noite macilenta, e ouvirás então o pedido de socorro de uma cidade maltratada, uma cidade exangue, amedrontada, coagida, obstruída.
Seis coisas perdidas dessa cidade deverás encontrar e fazer reflorir: dignidade, hombridade, justiça, honestidade, transparência, e trabalho.
Assim tu poderás devolver ao Recife um pouco de esperança, o dom mais precioso numa terra arrasada, pois só a esperança é que mantém os seres humanos vivos, repirando, com alguma noção de humanidade.
Como numa civilização perdida, procurarás entre escombros, os cacos do que se fora um dia e tentarás resgatar da lama de um rio poluído e maltratado, as crianças de meu Recife, as crianças maruins, as crianças mariscos, as crianças com pernas de palafitas, amortecidas na sua cidadania que não vem.
Antes de pores os pés nas ruas de calçadas descalças, para caminhares no garimpo de votos descuidados, olha no espelho, no próprio espelho de teu apartamento confortável, e procura ver a ti próprio como se fora um recifense comum que não és.
Lembra-te então que propina, desonestidade, corrupção, são dinheiro sangrados dos miseráveis, que pagam a conta de não terem sido.
Quando então, pisares no solo de Recife, lembra-te também que estás pisando no solo dos antepassados de um povo glorioso, onde dormitam agora, imobilizados, mas que foi por eles que agora vives.
Olha com carinho e compromisso por essa cidade anfíbia, porque quando estiveres também dormindo sob ela, a história fará teu registro.