Leia a tradução da matéria publicada no site da revista The Economist, disponível na íntegra em eagora.org.br Em 12 de janeiro o chefe da nossa sucursal em São Paulo entrevistou Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil de 1995-2002, no Instituto FHC.
Eles discutiram os desafios do Brasil e seu poderio global crescente.
Você pode clicar abaixo [no site da revista] para ouvir a conversa, ou ler a transcrição completa a seguir.
The Economist: Podemos começar pela maneira como a posição do Brasil no mundo está mudando?
O Brasil parece estar tentando criar um novo tipo de poder mundial – um “soft power”.
Cardoso: No século passado a economia do Brasil cresceu muito consistentemente até 1980.
Só o Japão cresceu mais depressa em termos per-capita.
Daí em diante o Brasil tem sempre procurado novos papéis.
Na cabeça do povo brasileiro, somos um gigante.
Mas nosso tamanho, por muito tempo ele foi uma ilusão.
Nós ainda não temos capacidade de desempenhar um papel importante.
Ficamos o tempo todo imaginando o que poderíamos vir a ser.
O Brasil aspirava ser parte do grupo central da Liga das Nações; depois da Segunda Guerra Mundial o Brasil levantou essa possibilidade de novo [durante a criação das Nações Unidas].
Churchill vetou, dizendo que as Américas não poderiam falar com duas vozes.
Churchill errou.
Assim, nós sempre aspiramos um papel importante.
No século XIX, por causa do confronto entre Espanha e Portugal, nós nos envolvemos em guerras no Sul, e o império brasileiro foi percebido por nossos vizinhos como uma ameaça.
Depois o eixo deslocou-se para os Estdos Unidos e o Brasil virou uma República e muito mais acomodado – e novamente hesitou.
Até que ponto deveríamos desempenhar um papel hegemônico na região?
Nunca assumimos esse papel.
Preferimos ser amados a ser temidos.
No fim do século passado, a economia recuperou o vigor, estabelecemos tradições democráticas e redescobrimos nossas peculiaridades culturais.
Isso nos deu uma sensação de que talvez pudéssemos desempenhar um papel na área da “soft politics”: não apenas por sermos economicamente fortes, mas também por causa da nossa capacidade de aceitar os outros, de sermos tolerantes.
Nós gostamos de nos considerar sem preconceitos, como uma democracia racial.
Não é inteiramente verdade, mas é uma aspiração com alguns ingredientes de realidade.
Porque de fato nós somos mais tolerantes do que vários outros países.
Compare os Estados Unidos e o Brasil.
Ambos são países construídos com base na imigração, nas no Brasil os imigrantes se integraram mais, e o que é mais impressionante é que as culturas se fundiram.
Não temos uma cultura negra no Brasil, e uma cultura branca.
Não tem sentido no Brasil falar de cultura negra: ela é a nossa cultura.
E nós aceitamos a variedade religiosa.
Não somos intolerantes – os brasileiros são sincretistas, não fundamentalistas.
E porque somos um país de imigrantes, temos contato com diferentes partes do mundo.
Muitos brasileiros são japoneses e talvez mais de 10 milhões são árabes.
Mais que isso são alemães.
Não há outro país no mundo com mais italianos, em números absolutos.
E tudo isso se fundiu.
Nós nunca sabemos exatamente qual é nossa ascendência.
O Brasil sempre foi a favor do multilateralismo, em vez de relações bilaterais, e de tentar negociar, lançar pontes.
A diplomacia brasileira se baseia nisso.
Nós precisamos olhar para o Sul, para a bacia do Rio da Prata, e para os Estados Unidos; relacionarmo-nos tanto com os Estados Unidos quanto com o Sul.
Há elementos de flexibilidade na cultura brasileira que têm origem em Portugal, não só no Brasil.
Se você comparar os portugueses e os holandeses na África, é bem diferente.
Os portugueses sempre tiveram relações sexuais com os nativos.Há uma frase que eu gosto de repetir quando estou na Espanha.
No século XVIII, o Marques de Pombal [Sebastião José de Carvalho e Melo, o primeiro ministro do Reino de 1750 a 1777] escreveu uma carta para seu irmão, o vice-rei do Norte do Brasil, dizendo: temos que estimular os portugueses a se casar com mulheres indígenas, porque é melhor ter meio português do que um espanhol!
Eles estavam enfrentando os espanhóis e se preocupavam com a questão demográfica.
Sentiam que essas crianças eram, de algum modo, portuguesas.
Isso não é comum no mundo hispânico, eles se mantinham mais separados.
Então, no Brasil, a classe dominante em geral tentava disfarçar o fato de que a desigualdade era tão grande.
Uma das maneiras de disfarçar as diferenças é tratar as pessoas como se elas fossem mais próximas do que realmente são, falar como se fôssemos iguais.
Até certo ponto, isso é um engodo, mesmo que as pessoas não se dêem conta; é uma maneira de manter as diferenças sem provocar uma reação forte.
A parte tradicional da classe dominante no Brasil será sempre amena, gentil, pedindo sempre “por favor”, em vez de mandar.
Com a nova burguesia não é assim: eles são muito mais arrogantes do que os grupos da elite tradicional do Brasil.
São diferentes – mais capitalistas.
The Economist: Vamos falar das mudanças sociais.
O Brasil mudou muito nos últimos anos.
Cardoso: O divisor de águas foi a nova Constituição.
O começo foi a luta contra o regime militar e as greves.
A nova Constituição foi o batismo de uma nova sociedade.
The Economist: Ainda está mudando.
Esta República é jovem; a Constituição foi escrita apenas em 1988.
Vocês ainda estão ajustando suas instituições.
Você participou do processo de construção de instituições, possivelmente o mais importante agente desse processo.
Cardoso: O sentido institucional sempre foi muito presente no Brasil, em comparação com outras partes do Novo Mundo.
A monarquia portuguesa era estável, e somos herdeiros da coroa portuguesa.
Todas as instituições chegaram aqui com o rei de Portugal e o Rio [de Janeiro] tornou-se a capital do Império português.
Ao mesmo tempo, esta é uma sociedade altamente desorganizada! É difícil combinar estes fatos: que temos instituições e ao mesmo tempo estamos sempre dispostos a desobedecê-las. É a flexibilidade – o “jeitinho”.
Isso é bom e ruim.
Em certos aspectos nossa legislação é ótima mas a prática é um desastre.
Por exemplo, temos regras muito estritas sobre a conduta dos funcionários públicos e políticos, e sobre o dinheiro público.
E apesar disso a corrupção está aí.
The Economist: A corrupção está aumentando?
Cardoso: Sempre tivemos algum grau de corrupção, aqui e ali, mas o sistema não era corrupto.
Agora o sistema permite a corrupção como um ingrediente normal.
Todos sabem que quando você organiza um governo você tem que partilhar poder com os partidos.
Mas você não está partilhando poder, você está partilhando oportunidades de ter bons contratos.
The Economist: Não foi esse o caso para você?
Cardoso: Não, não, não.
Talvez num ou outro caso, mas agora o sistema inteiro está baseado nisso.
Isto é novo. É uma evolução muito ruim.
Na cultura política, a flexibilidade tornou-se, não flexibilidade, mas tolerância com o crime.
Você tem instituições, tem tribunais, mas ninguém está na cadeia. (…)The Economist: Como o PSDB vai se unir ao redor de um candidato?
Cardoso: Tem que buscar a unidade interna.
Eu diria que agora o PSDB está mais consciente da necessidade de se unir.
Não é simples, porque o senso de coesão baseada em valores é menos forte que no passado. É mais uma questão de personalidades agora.
E o mesmo se aplica ao outro lado.
A última campanha deles foi nada, zero; as questões reais nunca foram levantadas.
Foi um simulacro de campanha, com marqueteiros desempenhando o papel de atores principais, em vez de serem submetidos a alguma liderança.
Agora há vários pontos de interrogação.
Qual será o papel de Lula?
Eu diria que ninguém sabe, nem ele mesmo.
Por causa da sua saúde [Lula tem câncer na garganta, com um bom prognóstico], mas não só por isso.
Diria que normalmente Lula tentaria concorrer: ee é um animal muito competitivo, um animal político.
E provavelmente a presidente Dilma não tem respaldo interno [em seu partido e nos parceiros de coalizão].
Se ele também tiver a mesma aspiração – não tenho certeza – será difícil para ela.
Uma coisa é concorrer com Lula, outra é concorrer com outra pessoa, mesmo a presidente Dilma.
No caso do PSDB, o ex-governador Serra desempenha o papel de Lula: ele tem fibra, gosta de competir.
Não sei até que ponto ele estará mais convencido que não é a vez dele, para dar espaço a outros.
The Economist: Quem seria o candidato óbvio?
Cardoso: Aécio Neves.
The Economist: Aécio pode ganhar?
Cardoso: Aécio é de uma cultura política brasileira mais tradicional, mais capaz de estabelecer alianças.
Ele tem apoio em Minas Gerais [seu estado].
São Paulo não é assim, sempre se divide, é muito grande.
As coisas vão ficar mais claras depois das eleições municipais [em outubro de 2012].
Provavelmente vamos ver uma forte luta interna no PSDB, entre Serra e Aécio.