Por Manuela Dantas Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue (Chico Buarque e Gilberto Gil) De fato a entrada de um novo ano sempre me levou a um estado de reavaliação do ano que passou, como também ao planejamento de uma nova vida, novos planos, novas esperanças, pelo menos na minha ilusão romântica…

Esse final de ano não foi diferente dos outros nessa resolução, pus-me a refletir sobre 2011 e sobre minhas atitudes boas e más, afinal, somos humanos e por mais que não admitamos temos esses dois lados.

Pois bem, nessa auto-avaliação a minha autocrítica se deparou novamente com a minha personalidade aguerrida e brava, confesso que não considero esse traço de personalidade de todo um mal, decerto que ele auxilia na minha defesa de situações ultrajantes, mas voltando aos dois lados das situações, sei que exagero algumas vezes nas minhas posições e acabo afastando boas pessoas do meu convívio…

Deus é testemunha do meu esforço habitual para me manter calma quando um fato, uma situação, uma pessoa pisa nos meus sentimentos e valores, mesmo que não perceba… Às vezes consigo, outras não…

Perdoe-me a quem eu magoei com palavras pesadas e duras, repetindo, às vezes exagero…

Na verdade nesses momentos sempre procuro buscar o perdão de Deus, dos homens e meu…

O instrumento do perdão, herdado dos hábitos hebreus e consolidado com o cristianismo, faz-nos avaliar e refletir sobre nossos erros e estabelecermos um compromisso com Deus, conosco e com os outros de não voltar a cometer aqueles erros.

A palavra perdão significa existir para se doar, em um sentido derivado significa também a virtude de perdoar as ofensas, a violência e o mal recebido, segundo o mestre em ética teológica Nilo Ribeiro Junior.

Não ouso dizer que não cometi mais de uma vez o mesmo erro, mas a reflexão e o pedido de perdão, além de me deixarem mais leve, levam-me a um autoconhecimento e aprendizado contínuo, pois como muitos amigos que lêem essa coluna sempre almejo me tornar uma pessoa melhor.

Nesse contexto a busca do perdão divino é a oportunidade de recomeçar, com uma nova vida, onde podemos gerar o bem e se arrepender verdadeiramente dos maus atos.

Outra coisa que faz parte da minha avaliação, acho que falo demais…

Na verdade tenho certeza…

Não consigo me calar diante das injustiças, mazelas, mal feitos, hipocrisia, mentiras, acomodações…

Em hipótese alguma me acho uma pessoa perfeita e que tenho atitudes irrepreensíveis, nem perto disso, aliás, minha mãe sempre me repreende…

Mas, tenho o hábito de dar, digamos assim, bons conselhos aos que estão ao meu redor…

Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor e engolir a labuta?

Mesmo calada a boca resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa?

Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta Pois bem, foi com essas resoluções de ano novo (calma, paciência, perdão e silêncio) que encarei a última semana do ano.

Mas, eis que minhas atividades profissionais me levaram ao CREA (Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura) e me fizeram esbarrar nas características de personalidade que quero “amenizar”.

Cheguei as 08:00 na instituição e me deparei inicialmente com a ausência de vagas reservadas para deficientes, para minha surpresa.

Ao estacionar em vaga comum e tentar sair do carro, encarei um terreno repleto de buracos que instabilizaram a minha cadeira, o que me levou a uma quase queda e a necessidade de 2 pessoas para me ajudarem.

Depois de enfrentar uma calçada com pedras portuguesas, que causam trepidação, buracos e batentes, enfim adentro na instituição que para mim era a referência da divulgação e prática das melhores diretrizes na engenharia e arquitetura.

Confesso que não fiquei apenas brava com a situação, fiquei triste, muito triste…

Afinal, como era possível que o órgão que tem uma comissão de acessibilidade, um prêmio de acessibilidade, um departamento de acessibilidade, e principalmente a missão de pregar e divulgar o que é certo e condizente com as normas de engenharia, seja na verdade, INacessível…

Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Isto posto, ao ser atendida, não consegui me conter e comentei o evento com o atendente que visivelmente constrangido não sabia o que dizer, pedi para falar com o presidente do CREA, diretores, no entanto ninguém estava presente…

Decidi escrever a minha sugestão/reclamação para a Direção do Conselho, pois apenas gostaria de lembrar que a norma NBR 9050 (2004), como também os Decretos Federais n05.296 (2004) e n010.098 (2000) estão vigentes e se aplicam as instalações públicas do CREA.

Também precisei ir a órgãos municipais ligados a engenharia e encontrei a mesma situação de Inacessibilidade…

Como diria minha mãe, casa de ferreiro espeto de pau…

Bom, diante do exposto decidi compor um sincero e-mail ao Presidente do CREA relatando alguns problemas de acessibilidade da edificação na Agamenon Magalhães e oferecendo o meu apoio para a regularização do imóvel quanto aos itens de acessibilidade, já que eu e os demais deficientes pernambucanos e brasileiros temos o direito de freqüentar esse prédio de uso público em iguais condições com os não deficientes…

Espero que, a minha tímida solicitação seja escutada…

Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada, prá a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa Continuando a minha tentativa de enfrentar situações ultrajantes e ao mesmo tempo manter a calma e a paciência, resoluções de ano novo, aconteceu um acidente com a minha avó após o jantar de Natal, a mesma caiu e fraturou o fêmur, tivemos que levá-la urgentemente ao Hospital de Ortopedia e Fraturas na Rui Barbosa.

Como que para continuar testando as minhas resoluções para o novo ano, nesse ambiente de utilização pública, novamente, não encontrei vagas destinadas a deficientes, o que gerou diariamente o constrangimento de ter que pedir para outra pessoa estacionar o meu veículo.

Por coincidência o médico que operou a minha avó foi no passado o meu médico, o mesmo é competentíssimo e tem uma sensibilidade diferenciada, mas isso não foi suficiente para enxergar a necessidade berrante de ter acessibilidade no hospital…

Fiz outra calma e paciente sugestão/reclamação e espero receber um ótimo retorno…

Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue De muito gorda a porca já não anda (Cálice!) De muito usada a faca já não corta Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!) Essa palavra presa na garganta Graças a Deus a cirurgia da minha avó foi um sucesso e hoje ela está muito bem, voltou para casa e está se recuperando…

Depois de passado o susto, voltei ao meu estado de reflexão e balanço do ano que passou, não tive como evitar as lembranças de todas as barreiras arquitetônicas e atitudinais que fui obrigada a enfrentar e de todas as vezes que tive de falar, escrever, gritar, brigar.

Após enfrentar uma dessas situações, cheguei em casa muito abatida emocionalmente, enfim não é bom brigar o tempo todo por algo que deveria ser natural, já que estamos lidando com direitos humanos constitucionais, normas brasileiras e leis federais, estaduais e municipais.

Muitas vezes parece que meu grito rouco soa sozinho no horizonte da cidade adormecida para um quinto da sua população, a qual é composta por deficientes.

Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade?

Mesmo calado o peito resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice Pai!

Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Mas, eis que o meu fisioterapeuta e amigo Paulo sabiamente me falou que às vezes, mesmo pesando na alma, somos destinados a nos posicionar, lutar e brigar para que algo mude permanentemente.

Aliada a essas palavras, lembrei do mentor do grupo Novo Jeito, Fabinho, um rapaz visivelmente iluminado por Deus e o Espírito Santo, que mesmo tendo um amor enorme no coração luta ativamente com seu grupo por um mundo melhor e para acordar a Recife adormecida.

O grupo Novo Jeito está promovendo uma ação no Coque com trabalhos em educação, saúde, esportes e música, através da Campanha Natal 365 dias em que clama a sociedade para acordar para a falta de cidadania de muitos recifenses.

O mesmo Fabinho organizou com o Novo Jeito um movimento no dia 31/12/11 a favor do AMOR e me convidou para ajudá-lo a fazer uma manifestação como essa a favor da acessibilidade.

Outro amigo o advogado Leonardo, propôs-me a organizarmos um livro com todas as orientações do direito e boas práticas destinadas aos deficientes.

Como também, o sábio cartunista, músico, historiador, escritor, roteirista, educador, Lailson de Holanda, propôs-se a fazer uma campanha educacional para deficientes através de cartilhas animadas por personagens que está criando para esse fim.

Lembrei da minha amiga-irmã, Janaina Alencar, que mesmo com problemas pessoais, terminando sua tese de doutorado e trabalhando muito, sempre tem uma palavra amiga, forte e de perdão quando estou injuriada diante das dificuldades diárias.

Por fim, lembrei de minha mãe que é a melhor pessoa que conheço e se doa a mim desde o acidente com uma abnegação pessoal e um amor, difícil de existir igual.

Talvez o mundo não seja pequeno (Cale-se!) Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!) Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!) Quero morrer do meu próprio veneno (Pai!

Cale-se!) Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!) Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!) Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!) Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!) (Chico Buarque e Gilberto Gil) Diante dessas atitudes solidarias, o meu coração inquieto se encheu de esperança quanto ao futuro e os raios de 2012 que surgem no horizonte da cidade já brilham e irradiam novos caminhos.

Entendo que enfim a cidade está despertando para abraçar igualitariamente todo o seu povo que não quer mais se omitir e se calar diante das constantes desigualdades de condições da população.

Aliás, há poucos dias foi divulgada a notícia de que o Brasil passou a ser a sexta economia do mundo, passamos o reino unido!

No entanto, ainda temos péssimos valores para os indicadores sociais, temos o IDH na 840posição dentre 187 países, como também temos o PIB per capita na 470ção.

Esses dados evidenciam que ainda temos um longo caminho pela frente, mas surge a luz no fim do túnel, pois nossa sociedade e governantes passaram a entender que um crescimento econômico e uma economia crescente só são possíveis com distribuição de renda e acesso de toda população a saúde, educação, transporte, segurança, enfim a cidadania.

Outrossim, li no jornal do commercio do dia 25/12/11 que o Brasil serve de referência para pelo menos 65 países com os seus programas sociais!

Enfim, nesse meu esforço de reavaliação pessoal notei que não consegui ser tão calma, paciente, silenciosa e nem perdoar todas as situações que encarei nas duas últimas semanas, mas utilizei dessas virtudes, na medida do pessoalmente possível, para tentar orientar pessoas e instituições quanto às deficiências de atitudes que estão apresentando e as barreiras arquitetônicas que nos estão impondo.

Percebi que as pessoas sábias e generosas que procurava estavam muito próximas a mim e que além delas existem milhares que querem se unir a nossa luta diária.

Percebi também que a cidade, o estado e o País estão dispostos a mudar para melhor e por isso perdôo a cidade, as pessoas, o estado, o Brasil por não me receberem de braços abertos como esperava, também peço perdão a todos por ser incisiva nos meus posicionamentos quanto à acessibilidade.

Afinal, essa luta é nossa e esse novo ano que adentra nos traz uma nova chance de acertar, de refazer e de se engajar nas causas justas.

Assim, desejo a todos um Feliz Ano Novo!

Findo esse artigo com um trecho do poema Receita de Ano Novo de Carlos Drummond de Andrade.

Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre. ( Poema de Carlos Drummond de Andrade )