Oh, musa do meu fado, Oh, minha mãe gentil, Te deixo consternado No primeiro abril, Mas não sê tão ingrata!
Não esquece quem te amou E em tua densa mata Se perdeu e se encontrou.
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: Ainda vai tornar-se um imenso Portugal!
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: Ainda vai tornar-se um império colonial!
Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal: Ainda vai tornar-se um império colonial! (Chico Buarque) Por Manuela Dantas, especial para o Blog de Jamildo Finalmente, após 6 meses de batalha acirrada, o meu tão esperado carro chegou para promover o aumento da minha independência e a minha liberdade de locomoção.
Dentro da realidade recifense e indo mais longe ainda da brasileira, o carro para o deficiente se torna muito mais do que um instrumento de transporte, ele representa a oportunidade de termos acesso a liberdade de ir e vir e é uma forte ferramenta de inclusão social.
Outrossim, como poderia um deficiente físico, ou um cego ter como meio de transporte as calçadas INacessíveis do Recife, ou utilizar os taxis não adaptados, ou ainda enfrentar a árdua batalha para conseguir utilizar o transporte público?
Indo ao contrário da tendência mundial da mobilidade urbana, baseada em transportes públicos, inclusivos e eficientes, tive que optar pelo carro próprio como meio de transporte de modo a ter acesso a um mínimo de dignidade em utilizar o meu direito constitucional de ir e vir e ,sinceramente, por não ter outra opção viável de transporte adaptado.
Ademais, verifica-se de um modo geral o crescimento de pessoas com deficiência conduzindo seus próprios veículos.
Isso tem ocorrido devido à isenção de impostos (IPI, ICMS, IOF e IPVA), mas principalmente devido à ausência de transporte acessível compatível à necessidade dessas pessoas.
Outrossim, confesso que me decepcionei, profundamente, com a cidade na qual nasci e que eu tanto amo.
Na minha ilusão idealista, Recife estava sempre no topo das manifestações em prol das minorias e das lutas justas para manutenção e obtenção de direitos tomados inicialmente pelos braços lusitanos e mais adiante pelos duros punhos da repressão.
Dessa maneira, deparei-me com a realidade, cruel e bem distante dos meus sonhos juvenis, de que Recife não tinha mais lugar para mim, sendo deficiente.
Simplesmente, eu morava numa cidade que excluía uma filha, não pródiga, mas próspera, uma filha realmente disposta a se doar por essa mãe não gentil.
Dores a parte, iniciei o meu longo processo para obtenção do carro com a isenção fiscal de IPI e ICMS, garantida por lei e fruto de uma necessidade sincera de 24% da população brasileira composta por deficientes.
E assim começou a minha odisséia…
Inicialmente, fiz auto-escola para aprender a guiar um carro adaptado e marquei no DETRAN a minha avaliação de direção de modo a ter a carteira de motorista para direção de carro adaptado.
Esse evento durou 15 dias.
Na primeira parada, na sede do DETRAN em Recife, após esperar aproximadamente 3 horas para ser atendida, fui realizar a minha perícia médica para evidenciar a paraplegia e receber o laudo oficial do DETRAN.
Após 3 semanas, quando recebi o laudo assinado pelos 3 médicos da junta que me avaliou, deparei-me com a surpresa de ter que reconhecer firma de 5 assinaturas diferentes, todas em cartórios distintos, lá se iam mais 3 dias peregrinando em cartórios para oficializar esse documento.
Segunda parada, sede da Receita Federal em Recife, surpreendeu-me ter como única opção utilizar um edifício público inacessível sem rampa para a entrada nem qualquer instrumento que facilitasse a minha mobilidade no mesmo.
Levei conforme exigido, a carteira de motorista, a perícia médica do DETRAN com todas as assinaturas tendo firma reconhecida, comprovante de residência, declaração do imposto de renda, 2 formulários da Receita preenchidos e holerite com comprovação de renda.
Após 2 semanas, tive que enfrentar a mesma inacessibilidade para pegar a liberação da isenção do imposto pela Receita Federal.
Mas não acabou por aí, está na verdade bem longe…
Terceira parada, concessionária, aonde escolhi o veículo mais adequado a minha atual condição, entreguei a perícia do DETRAN e a liberação da receita, pude assim obter a carta com o valor do carro, necessidade exigida pela Secretaria da Fazenda.
Quarta parada, secretaria da fazenda de Pernambuco, aonde mais uma vez entreguei: a perícia médica do DETRAN, comprovante de residência, carta com o valor do carro realizada pela concessionária, holerite com comprovação de renda.
Dois dias depois, recebi o documento com autorização para desconto do imposto.
Nessa ocasião, uma funcionária séria da instituição me explicou todas as regras para manutenção do direito a isenção do imposto e me falou que essa liberação estava possibilitando a muitos deficientes que não teriam a oportunidade de comprar um carro, de assim o fazer e poderem, finalmente, deslocarem-se com independência pela cidade, retornarem ao trabalho, terem acesso ao lazer, frequentarem a casa de amigos e terem condições mínimas de cidadania.
Nesse momento, eu que estava impaciente com idas e vindas realizadas com taxi para conseguir comprar o carro com isenção de impostos, pensei nos inúmeros deficientes que não podiam se “dar ao luxo” de andar de taxi e que tinham que usar os ônibus e as nossas famosas calçadas INacessíveis para realizar aquele que parecia um infinito caminho que levava a isenção de impostos na compra do veículo.
Mas…
Vamos lá, chegamos ao meio da odisséia e também já estou cansada só de relembrar esse longo caminho que percorri.
Quinta parada, concessionária, entreguei os documentos necessários e fui surpreendida com a informação de que para o carro sair da fábrica em São Paulo no meu nome a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo também deveria liberar a cobrança do ICMS e autorizar a emissão da nota no meu nome.
A concessionária relatou que historicamente essa liberação durava de 1 a 2 meses.
Para testar a minha paciência que estava sobremaneira indignada com os maus tratos dos motoristas de taxi em Recife, a liberação da Secretaria da Fazenda de São Paulo demorou 3,5 meses.
Sexta parada, sede do Detran, finalmente 6 meses após o inicio do processo o carro chegou e tive que o levar à sede do Detran para realizar a primeira vistoria e liberação do documento provisório do carro.
Sétima parada, secretaria da fazenda de Pernambuco, solicitei e recebi a liberação no mesmo dia para não pagamento de IPVA.
Oitava parada, associação dos deficientes físicos de Pernambuco, realizei em 4 horas a adaptação do veículo para conduzi-lo com o uso exclusivo das mãos.
Nona parada, sede do Inmetro em Recife, tive que realizar a vistoria das condições da adaptação.
Lá se vai mais um dia de espera…
Décima parada, sede do DETRAN Recife, tive que realizar nova perícia com o carro já adaptado.
Décima primeira parada, secretaria da fazenda de Pernambuco, tive que entregar o laudo da vistoria do carro adaptado.
Décima segunda parada, sede do DETRAN em Recife, tive que realizar a solicitação de documento do veículo com as informações da adaptação realizada.
Décima terceira parada, sede da Receita Federal em Pernambuco, tive que enfrentar novamente o problema da inacessibilidade para entregar a nota do carro comprado.
Ufa!
Sete meses após iniciar o processo, enfim tive a oportunidade de dirigir o carro, o qual está me proporcionando o acesso a recintos que continuo gostando de freqüentar, como também ao trabalho, a casa de amigos, enfim a vida em sociedade.
Porém, num lampejo de lucidez, revi todos os passos que tive que percorrer para obter aquela isenção de impostos e a enorme burocracia que tive de enfrentar para obtenção da mesma…
Lembrei de um deficiente reclamando em um site sobre a enorme quantidade de exigências solicitadas para obtenção dessa isenção, as quais dificultavam o acesso à isenção para pessoas com condições mínimas de mobilidade, principalmente em cidades pouco acessíveis, o que é o caso das cidades brasileiras.
Isso posto, evidenciou-se que o processo estabelecido para um direito mais do que legal é deveras longo, burocrático e repleto de entraves para pessoas como eu e meus colegas deficientes.
Diante dessa situação acachapante, tenho refletido sobre o absurdo de tantas exigências para a concessão desse direito a deficientes, o que chega a afrontar o bom senso e à razoabilidade prevista na constituição federal, na medida em que promove transtornos sem predicados ao se fazerem necessários uma série de deslocamentos por deficientes em cidades inacessíveis.
Aliás, a burocracia e o entrave em órgãos públicos não é um privilégio dos deficientes, mas sim de toda a sociedade brasileira.
Acompanhando os enredos atuais da corrupção em todas as esferas da administração pública, percebe-se como a burocracia acaba por facilitar os desvios de recursos que trafegam por uma linha imensa de paradas antes de chegar ao seu destino final, que deveria ser o bem público.
Essa burocracia inútil, devido à grande quantidade de procedimentos imposta, institucionaliza também a destinação de recursos públicos para a alocação de espaço e aumento do quadro de funcionalismo público.
Aliás, outro dia li sobre a quantidade e custos de cargos públicos brasileiros, como também me causou espanto a existência no Brasil de 23.579 cargos comissionados, enquanto que os EUA possuem apenas 8000 e mais espantosamente ainda o Chile possui apenas 600.
Refleti sobre o custo da burocracia para o contribuinte…
Essa herança de hábitos burocráticos dos nossos antigos donatários e da metrópole lusitana tem nos feito pagar uma conta demasiadamente alta.
Nisso tudo, todos saímos perdendo, o interesse público e particularmente o grande contingente de deficientes, que aumenta a olhos vistos todos os anos no Brasil.
Diante dessa realidade, surge a necessidade gritante de simplificação nas condutas que levam a garantia dos direitos estabelecidos.
Finalizando o meu protesto fundamentalista, insisto em argumentar que o direito a cidadania inclui manifestar publicamente nossas opiniões.
Isso posto, convoco a todos que se sintam prejudicados pela burocracia inútil do Império Brasileiro a se juntarem a mim nessa causa, a fim de conseguirmos sensibilizar as três esferas do poder público (executivo, legislativo e judiciário) a lutar contra uma burocracia desnecessária nesse caso e em milhares de outros nessa nossa pátria amada, idolatrada, chamada BRASIL.
Ora pois, salve, salve Brasil! Ó pá…