Senhor Presidente, Senhoras e Senhores Senadores, Li neste último final de semana, no jornal “Folha de S.Paulo”, no caderno “Ilustríssima”, o relato de um dos crimes mais bárbaros, mais chocantes ocorridos no Brasil durante o período da Ditadura Militar que se instalou no País a partir de 1° de abril de 1964.
O texto intitulado “A outra vida do tio Enéas” foi escrito pela atriz paulista Mika Lins e fala da amizade de seus pais com o “Tio Enéas”, que na verdade era o dirigente do Partido Comunista Brasileiro, o “cearense-pernambucano” David Capistrano da Costa.
O alerta para esse importante registro histórico me foi feito pelo Ex-Deputado Federal Maurílio Ferreira Lima, que é uma pessoa – mesmo sem mandato parlamentar – atenta a todas as questões de relevância política, quer seja no Brasil ou no cenário internacional.
Dito isso, Senhoras e Senhores Senadores, gostaria de reproduzir alguns trechos do depoimento emocionante de Mika Lins.
Abre aspas: “Tio Enéas era um homem muito alto e, na minha memória, aparece com um terno escuro, a camisa branca, o cabelo penteado para trás e um bigodinho engraçado.
Para uma criança, filha única de pais que trabalham fora, qualquer hóspede era motivo de alegria.
Ainda mais um hóspede como ele, sempre tão atencioso.” David Capistrano era um homem incrível.
Quando o conheceu, nos anos 1960, no Recife, meu pai tinha uns 18 anos e já militava no PCB; trabalhava no governo Miguel Arraes.
David tinha história.
Nascido em 1913, no Ceará, participou do levante de 1935, quando era sargento da Aeronáutica, e foi condenado à prisão pelo Estado Novo.
Lutou na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa durante a ocupação nazista.
Em 1947, já de volta ao Brasil, foi eleito deputado estadual por Pernambuco, onde também dirigiu os jornais “A Hora” e “Folha do Povo”.
Com a ditadura, caiu na clandestinidade até partir para a Tchecoslováquia, no início dos anos 70.
Meu pai amava aquele homem pelo espírito de luta, pela posição ideológica e pela humanidade.
Minha mãe também -tanto que escondia David em nossa casa mesmo não sendo mais casada com o meu pai e tendo a perfeita noção do risco que corríamos.
Em 1974, aos 61 anos, David voltou escondido do exílio.
Ao passar pela fronteira em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, foi preso pelos agentes do Exército e logo dado como desaparecido.
Em 2008, a jornalista Taís Morais publicou o livro “Sem Vestígios - Revelações de um Agente Secreto da Ditadura Militar Brasileira”, escrito com base em anotações enviadas a ela de forma anônima pelo agente de codinome Ivan Carioca.
Nelas, Carioca relata com detalhes o fim trágico de David, torturado, morto e esquartejado, em Petrópolis.
Carioca descreve a visão do corpo daquele homem enorme e doce que conheci: “Um tronco, dividido ao meio.
As costelas de Capistrano pendiam ao teto, e ele, reduzido aos pedaços, como se fosse uma carcaça de animal abatido, pronta para o açougue”.
Depois de ler, com tristeza, perguntei delicadamente a meu pai se gostaria de ler.
Respondeu que sim – em 2008, ele se tratava de um câncer de pulmão diagnosticado no ano anterior.
Meu pai morreu neste último dia 5 de agosto, mas não sem saber como partiu o amigo a quem homenageara dando a meu irmão o nome de David Lins.
Para minha mãe, o colar que ganhou de David Capistrano é a única joia da família e o presente mais significativo que recebeu.
Ao lembrar essa história, além da saudade do meu pai, tenho a sensação desagradável de que talvez crimes da ditadura brasileira nunca sejam punidos.
E penso que, por trás de cada movimento histórico, revolucionário ou não, há uma partícula delicada, talvez banal, de cada homem, que se mantém pela lembrança de uma garota com seu brinquedo de lata ou no brilho de um colar de cristal.” Fecha aspas.
Pela contundência desse depoimento publicado na edição da Folha de S.Paulo, edição do último domingo, 23 de outubro, Senhor Presidente, gostaria de solicitar a sua transcrição nos Anais do Senado Federal, pois existem episódios da nossa história que não devem ser esquecidos.
Este é um deles.
E mais ainda: devemos ter em mente que lembrar esses acontecimentos ajuda a impedir que eles se repitam no futuro.
Outra iniciativa que tomarei é procurar o nobre Senador Paulo Paim, um dos parlamentares mais comprometidos com as causas sociais desta Casa, que será o relator na Comissão de Direitos Humanos do PLC 88/11, que cria a Comissão Nacional da Verdade, para que juntos, possamos ultimar a tramitação desse Projeto, se possível contando com a boa vontade das lideranças para que a proposição possa tramitar em regime de urgência, visto que, já possui parecer favorável da CCJ onde foi brilhantemente relatado pelo Senador Aloysio Nunes.
A Comissão terá como finalidade examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período de 1946 até a data da promulgação da Constituição de 1988, com o objetivo de garantir o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
Pretendo solicitar ao Senador Aloysio que dê prioridade às investigações sobre a tortura e o bárbaro e perverso assassinato de David Capistrano, relatado com riqueza de detalhes no livro “Sem Vestígios”, da jornalista Taís Morais, publicado em 2008, que também serviu de referência para o texto de Mika Lins.
O Brasil precisa se reencontrar consigo mesmo e esclarecer de forma definitiva, sem quaisquer dúvidas, casos como da bárbara morte de David Capistrano, do desaparecimento de Rubens Paiva e de centenas de assassinatos de brasileiros por setores do aparelho repressivo do regime ditatorial.
Esses episódios representam páginas incompletas da História do Brasil, representam um período sombrio, no qual a barbárie foi patrocinada pelo Estado, os abusos e o desrespeito dos Direitos Humanos tomaram proporções assustadoras.
Não se trata de revanchismo, mas sim de uma necessidade premente do nosso País, de se transformar numa sociedade democrática e desenvolvida, de forma plena, jogando luz onde a história ainda é marcada pela escuridão.
Era o que eu tinha a dizer, Senhor Presidente.
Muito obrigado.