Por Manuela Dantas, especial para o Blog de Jamildo Subiu a construção como se fosse máquina… …Sentou pra descansar como se fosse sábado Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago Dançou e gargalhou como se ouvisse música E tropeçou no céu como se fosse um bêbado E flutuou no ar como se fosse um pássaro…

Como se fosse a bailarina da caixinha de música que animou minha infância, fui quase flutuando ao meu restaurante preferido, tão visitado por mim em outros tempos e que representava naquele momento o meu retorno definitivo a vida social na capital pernambucana.

Lembrei das noites felizes naquele recanto, da ótima refeição oferecida, das palavras disputadas na mesa povoada por amigos e das conversas ao pé do ouvido.

Como se fosse uma boneca de pano adentrando a construção fui conduzida esperando que tudo fosse como antes.

Como me surpreendeu ser retirada subitamente do devaneio de princesa e ser lançada rapidamente na realidade de ter me tornado a mais nova cidadã recifense que anseia por permanecer tendo uma vida digna e com todos os direitos assegurados sendo deficiente.

A primeira constatação inevitável no restaurante foi a inexistência de estacionamento para deficientes, o que me obrigou a me ver sob o risco de ter que sair do carro no meio de uma avenida movimentada de Recife.

A segunda descoberta irrefutável foi à ausência de rampas para ter acesso às calçadas do tão freqüentado restaurante.

Superada mais essa barreira dei de cara com uma rampa de acesso ao restaurante lotada por cadeiras e pessoas sentadas, as quais constrangidamente, levantaram-se para dar acesso a minha passagem.

Enfim, pude colocar meu nome na lista de espera para adentrar aos umbrais do restaurante que me proporcionaria o manjar dos deuses.

Passou-se 1 hora de espera e nada de entrar na construção, não entendi o que acontecia já que eu tinha prioridade no atendimento.

Pedi audiência com o gerente do estabelecimento, surge uma moça já preparada para defender-se contra uma eminente inquisição, questionei sobre a demora no atendimento, mas não foi necessária nenhuma resposta da mesma, já que observei o restaurante sob a óptica recém adquirida e constatei a existência de vários batentes no salão interno repleto por mesas, mas com rampas ausentes, o que me impossibilitava o acesso as mesas…

Fui chamada pela recepcionista e eis que surgiu uma mesa para mim e meus amigos, porém a ilusão rapidamente caiu por terra, a moça visivelmente envergonhada, desculpou-se e avisou que realmente surgira uma mesa no andar superior, porém o restaurante não possuía elevador para deficientes.

Questionei como o restaurante tinha obtido alvará de funcionamento e até mesmo habite- se já que tinha sido lançado há 4 anos e nessa época já existia a NBR 9050 de acessibilidade, como também a lei Federal n0 10.098/2000 para garantir a acessibilidade de deficientes e o decreto federal n0 5.296/2004.

A gerente me respondeu rapidamente que o restaurante possuía toda a liberação de “legalidade” emitida pela Prefeitura do Recife.

Questionei-me sobre quem seria responsável por aquela liberação absurda que infringia a legislação federal.

Lembrei, então, da minha formação na escola de engenharia da Universidade Federal de Pernambuco, na qual não tive disponível na grade curricular disciplina sobre construção acessível, procurei um amigo arquiteto que confirmou a minha hipótese: A faculdade de engenharia e de arquitetura não tinham em seu quadro de disciplinas eletivas e obrigatórias o assunto referente a construções acessíveis, pelo menos até 2002, ano de minha formatura, em que fui premiada com o título de láurea universitária.

Confesso que antes do acidente nunca tinha estudado sobre acessibilidade de construções, eu que sempre fui tão estudiosa, curiosa e guerreira …

Dessa forma, proponho a todos a devolver meu título de láurea, hoje percebo que não mereço o que antes me causou tanto orgulho.

Antes da deficiência física, tinha uma deficiência muito grave, tive uma forte deficiência de atitude em não enxergar que 15% da população brasileira e 17% da população pernambucana tinha o direito, assegurado por lei e norma brasileira, de ter acesso a todas as edificações e estava excluída…

Percebi, também, que fazia parte da garantia da dignidade humana sermos agentes de promoção de uma arquitetura baseada no desenho universal e de uma construção que garantisse o acesso de todos.

Isso posto, duas horas após a minha chegada ao restaurante, consegui posicionar-me a mesa e jantar, o manjar anteriormente imaginado não tinha mais o mesmo sabor, comia como se fosse máquina ao me deparar com a conclusão irrefutável que agi nos 31 anos anteriores ao acidente como se fosse uma máquina conduzida rapidamente pelo andar da sociedade, ou talvez, de um modo mais feminino a Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo ao andar freneticamente a procura de nada…

Foram muitas as edificações de uso coletivo, ou seja, restaurantes, bares, lojas, parques, casas de shows, teatros antes freqüentados regularmente e agora freqüentados com a triste constatação de que a acessibilidade prática que garanta a independência e a liberdade de acesso a todos em iguais condições não existe, mesmo nos locais que ostentam o símbolo de acessibilidade, mais por obrigação do que pelo dever cívico de permitir o livre acesso de todos os cidadãos aos seus nobres recintos de lazer e de utilidade pública.

Decerto, meus dignos amigos arquitetos, engenheiros, gestores públicos e privados, empreendedores, administradores desconhecem como eu desconhecia as normas de acessibilidade vigentes, dessa forma me proponho a identificar os principais conceitos relacionados ao tema de acessibilidade em edificações: Acessibilidade: Possibilidade e condição de uso, com segurança e autonomia, de edificações, espaços, mobiliários e equipamentos urbanos.

Desenho Universal: Deve ser concebido como gerador de ambientes, serviços, programas e tecnologias acessíveis, utilizáveis equitativamente, de forma segura e autônoma por todas as pessoas, sem que tenham que ser adaptados e readaptados.

Barreiras Arquitetônicas: Qualquer entrave ou obstáculo existente no interior dos edifícios públicos e privados que limite ou impeça o acesso, a liberdade de movimento e a circulação com segurança das pessoas Dessa forma, a garantia da acessibilidade às edificações, tal como definem a ABNT e legislação federal, estadual e municipal depende da eliminação completa das barreiras arquitetônicas.

Essas barreiras ocorrem em acessos, áreas de circulação horizontal e vertical, portas, janelas, sanitários, vestiários, piscinas e mobiliários (telefones, balcões, bebedouros etc.).

Todas essas características das edificações devem garantir a inclusão de todos e ter como referência a diversidade humana com todas as suas características de modo a garantir a dignidade humana de todos os modos possíveis e de todos os jeitos sonhados.

Outrossim, quebrada a barreira da invisibilidade cômoda me dispus no meu ambiente de trabalho e fora dele a ser um instrumento de divulgação e conscientização da necessidade eminente dessa inclusão tão ambicionada por 25 milhões de brasileiros deficientes e dignos de respeito.

Corro também, como um cavaleiro errante, a procura de parceiros comprometidos com nossa gente em sua totalidade e que representem a luta pela conquista e manutenção da dignidade humana.

Por fim, ou enfim, sinto-me descobrindo um novo mundo, uma nova vida e uma nova liberdade, tal qual o operário em construção de Vinícius de Moraes e assim com as palavras do poetinha findo esse artigo. …Foi dentro da compreensão Desse instante solitário Que, tal sua construção Cresceu também o operário.

Cresceu em alto e profundo Em largo e no coração E como tudo que cresce Ele não cresceu em vão Pois além do que sabia - Exercer a profissão - O operário adquiriu Uma nova dimensão: A dimensão da poesia. …Uma esperança sincera Cresceu no seu coração E dentro da tarde mansa Agigantou-se a razão De um homem pobre e esquecido Razão porém que fizera Em operário construído O operário em construção.