DIGNIDADE Depois de retirar população da rua é preciso ensinar a viver em sociedade Por Daniel Guedes (fotos, vídeos e texto) Deslumbrado com um Eldorado chamado Suape, Gilberto Rogato Rondon, 54 anos, paulista da cidade de Jaú, veio tentar a vida em Pernambuco.

Deixou casa, esposa, filho.

Largou tudo no interior de São Paulo.

No dia em que o serralheiro industrial planejava se inscrever para uma vaga de trabalho, o destino achou por bem dar uma rasteira nele.

O sonho de prosperidade terminou num atropelamento que lhe comprometeu a coluna.

Pouco a pouco, as economias acabaram.

Sozinho no Recife, a rua foi tudo o que restou como (falta de) opção de moradia.

Depois do acidente, não teve mais endereço fixo.

Derby, Cais de Santa Rita…

Não fazia diferença.

Era tudo rua e as consequências de nela viver.

No meio de uma briga de seus “vizinhos”, quase morreu. “É a porta do inferno”, resume. “Quem vive na rua não tem como tomar um banho direito.

Não come porque simplesmente não tem o que comer.

As pessoas olham e falam ‘Olha um vagabundo, jogado no meio da rua’.

Mas não veem que ali tem uma pessoa trabalhadora, mas que não pode trabalhar, não tem como”, lamenta o homem.

A vida de Gilberto começou a mudar quando foi convidado a deixar de ser estatística.

Pode sair da lista de 1.600 pessoas que, no ano passado, viviam nas ruas do Recife.

Hoje tenta recomeçar numa casa de acolhimento no Cordeiro, na Zona Oeste da capital.

Agora tem um teto, comida, banho e voltou a dormir numa cama.

Recuperou a dignidade e a capacidade de sonhar.

Faz questão de dar entrevista no quarto que divide com outros três homens que viviam na mesma situação.

Na casa, mantida pela Prefeitura, são 40 ex-moradores de rua, entre 18 e 60 anos, que lá podem ficar até voltar para casa ou então até terem condições de andar com os próprios pés.

Enquanto isso, têm seis refeições, acompanhamento psicossocial e médico.

Na enfermaria, uma lousa marca os exames e especialistas que cada um deve buscar.

ORGANIZAÇÃO Quadro traz horários de médicos e exames dos moradores dos centros Gilberto está juntando documentos para buscar o benefício do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS).

Com o dinheiro, pretende ir a São Paulo procurar o filho que não vê há 14 anos, quando saiu para ganhar o mundo.

Depois, diz, voltará. “São Paulo não dá mais.

Volto para cá e monto alguma coisinha para mim.

Como trabalho com madeira, pretendo abrir uma marcenaria e botar um menino para me ajudar, já que não posso mais carregar peso”, planeja o serralheiro.

Quem também já voltou a sonhar foi Alexandre Barata de Melo, 40, que foi parar na rua depois que a mãe morreu e ele ficou sozinho.

Prefere não lembrar do tempo que passou dormindo em papelão na beira do canal de Setúbal, em Boa Viagem, na Zona Sul.

Hoje se afastou da bebida, sua companhia de noites sob a chuva, e agora só quer olhar para frente. “Vida de rua é vida de bicho.

Não é vida pra ninguém não.

Quero ir para uma casa e fazer curso de pintura porque agora tem muita oportunidade para isso”.

Mas nem todas as 900 pessoas que habitavam as ruas recifenses até agosto deste ano pensam do mesmo jeito que Gilberto e Alexandre.

Muitos dos que são abordados pelas equipes do Instituto de Assistência Social e Cidadania (Iasc) não querem sair da selvageria em que vivem e serem levados para um dos 12 centros de acolhimento do município. “Esse é um desafio grande.

Nessas casas, a gente precisa estruturar uma rotina.

Na rua, há uma liberdade muito grande.

A gente cria uma ideia de que todo mundo quer proteção, quer abrigo.

E não é assim”, revela a diretora de Proteção Social Especial de Alta Complexidade, Edna Granja.

Quando chegam aos abrigos, é necessário reeducar os até então moradores de rua.

O trabalho de manutenção é intenso para evitar sujeira e depredação.

Levantamento do Ministério de Desenvolvimento Social de 2005 mostra que de 30% a 40% da população de rua são usuárias de álcool e outras drogas, o que dificulta o processo de ressocialização.

De acordo com Melissa Azevedo, diretora de Proteção Social Especial de Média Complexidade, maus tratos, violação de direitos e crescente dívida de tráfico são as principais causas que levam pessoas às ruas. “Como forma de proteção, eles se desterritorializam”, aponta ela.

Apesar de não haver números oficiais, os técnicos começam a perceber outros dois novos fatores têm levado a população a morar nas calçadas da cidade.

Há cada vez mais casos como o de Gilberto, que buscam uma oportunidade em meio ao desenvolvimento vivido pelo Estado.

Muitos não conseguem uma oportunidade e acabam ficando desamparados.

A tal onda desenvolvimentista, observada principalmente na Região Metropolitana da capital, também provoca um considerável aumento nos valores dos aluguéis.

Sem condições, só resta a rua como moradia.

Também há casas específicas para crianças e adolescentes e para mulheres.

CENTRO DE TRIAGEM - A assistência a moradores de rua é algo recente no Recife.

A Prefeitura só tomou essa responsabilidade para si em 2001 - assim, o trabalho ainda apresenta muito de empirismo.

Dentre as novidades, está o Centro de Referência Especializado de Assistência Social para pessoas em situação de rua (CreasPop), na Rua Cândido Lacerda, 354, Torreão, na Zona Norte do Recife.

A unidade será uma espécie de posto de triagem para os moradores que são chamados pelas equipes de abordagem. “Para realizar atividades socioeducativas, fica o tempo que julgar necessário.

Já o repouso é pontual.

O foco é nas pessoas em vulnerabilidade social”, explica Melissa.

O telefone do centro é (81) 3355.3063 e o local deve ser inaugurado até a primeira quinzena de outubro.