Por Manuela Dantas, especial para o Blog de Jamildo Acredito que vocês já estão demasiadamente acostumados há todas as semanas ouvirem Chico Buarque através das palavras sussurradas nesses artigos, dessa forma replicando as palavras do meu pai “time que está ganhando não se muda” continuarei pedindo emprestadas as músicas do gênio para iniciar essa coluna.
Continuando a minha odisséia, no meu retorno a Recife quis sobremaneira morar próximo aos meus sobrinhos, inclusive na mesma rua, para correr para perto deles sempre que apertasse a saudade, mas fiquei surpreendida negativamente ao realizar esse percurso de 200 metros e não conseguir ir pelas calçadas de um bairro de classe média alta de Recife.
Buracos, diferenças de nível, inclinações, trepidações…
Impossível transitar por essas calçadas utilizando cadeira de rodas!
Ora, a conclusão objetiva que cheguei é que isso esbarra contra a constituição federal que prevê como direito fundamental do cidadão ir e vir.
Todos, universalmente, têm o direito de utilizar as calçadas para seus deslocamentos e eu estava excluída daquele direito, mas não só eu, todos os cadeirantes, as pessoas com mobilidade reduzida, os cegos, os idosos, as crianças em carrinhos de bebê, mulheres grávidas…
Essa demanda reprimida me remeteu instantaneamente para as letras do maestro soberano Antônio Brasileiro: é pau, é pedra, é o fim do caminho…
Fui obrigada a ir para a via e concorrer desvantajosamente com os carros por um espaço para me deslocar.
Ademais, iniciei a minha observação do espaço urbano.
Quando eu via um cadeirante nas ruas ele estava utilizando as vias e não as calçadas em situações perigosíssimas, mas, infelizmente, ele não conseguiria se deslocar em Recife de outra maneira.
Pesquisei e descobri que 1/3 da população da região metropolitana do Recife se desloca a pé, ou seja, cerca de 1,5 milhões de pessoas utilizam a caminhada como principal meio de transporte.
Esse fato, aliado a taxa de 17,4% da população pernambucana com algum tipo de deficiência já determinam que uma grande parte da população do nosso estado esteja excluída.
Não é de se admirar que as características físicas das calçadas pudessem se tornar verdadeiros obstáculos acabando por segregar os usuários com limitações físicas e até constrangendo e impedindo seus deslocamentos.
Outro dia cai na calçada do parque Dona Lindu ao passar por uma divisão das placas de concreto, mas sou teimosa, como escreveu um amigo em comentário do artigo anterior, levantei, sacudi a poeira e decidi dar a volta por cima.
Afinal, eu não estava errada em me deslocar, em continuar freqüentando teatros, continuar a trabalhar, continuar a freqüentar parques.
A cidade é que estava errada em querer me excluir, ou melhor, em querer excluir milhares de pernambucanos.
Isso posto, fui pesquisar as normas e leis que definem as questões referentes a vias públicas no Brasil, em Pernambuco e em Recife.
Encontrei a Norma Brasileira da ABNT 9050 de 2004 que define os padrões de acessibilidade a edificações, mobiliário, espaços e equipamentos urbanos. norma estabelece o conceito de desenho universal que tem como principio básico a inclusão de todos os brasileiros.
A NBR 9050 indica os padrões a serem seguidos para as calçadas como o tipo de acabamento utilizado, as inclinações adequadas, as faixas livres de interferência, as sinalizações táteis, afinal, tudo o que se precisa saber para se fazer uma calçada utilizável, inclusiva e que respeite a diversidade humana.
Eis que em 2004 também surge o Decreto N05296 da Presidência da República que define prazos, multas e a adoção imediata da NBR 9050.
Por meio desse decreto, todas as obras a partir de dezembro de 2004 deveriam ser realizadas a partir dos conceitos de acessibilidade da referida norma e a adequação da infra-estrutura existente deveria ser realizada até 2014.
Paralelo a isso, o decreto pauta a existência da fiscalização e multas a infratores dessa norma.
Nesse contexto, o conceito de acessibilidade desempenha papel fundamental para a promoção da igualdade social e para que pessoas com diferentes características, habilidades e condições de mobilidade utilizem o espaço público.
Assim sendo, a acessibilidade não deve ser vista de forma segregada das demais funções da cidade, destinada exclusivamente a pessoas com deficiências.
Ela deve estar integrada a todos os projetos e programas, públicos e privados, nos seus diversos segmentos e para todas as pessoas.
Estarrece-me saber como estamos distantes das determinações da Norma Brasileira e do Decreto Federal citados e das determinações mundiais de Direitos Humanos!
Repugna-me saber que essas determinações, diga-se de passagem, simples, baratas, justas, necessárias, inclusivas, não são cumpridas, não são fiscalizadas, os infratores não são multados.
Então, o meu habitual sussurro se transforma rapidamente num grito forte, com uma vontade louca de convocar todos em um brado único: É preciso derrubar preconceitos! É preciso derrubar barreiras! É preciso encontrar novas fronteiras!
Nesse momento, lembro saudosamente da terra da garoa, não pela cidade e mais pela organização de suas políticas públicas de fiscalização ao direito do cidadão, aliais, qualquer cidadão pode entrar no site da prefeitura e em espaço próprio denunciar a existência de calçadas mal conservadas e não acessíveis.
Afinal, está previsto no tão citado decreto que podemos acompanhar o seu cumprimento e assim estou determinada a fazer.
Com o tempo percebi que independentemente de posturas partidárias é nobre para a gestão pública seguir bons exemplos e que existem muitos modelos em práticas em cidades brasileiras de programas de execução e orientação da sua população na execução das necessárias calçadas inclusivas que podem ser adotados e replicados por Recife e demais cidades de Pernambuco.
Projetos tais como: Projeto Calçada Cidadã – Prefeitura Municipal de Vitória (2002); Projeto Calçada para Todos – Prefeitura Municipal de Londrina (2004); Programa Passeio Livre – Prefeitura Municipal de São Paulo (2005); Projeto Calçada Cidadã – Prefeitura Municipal de Guarapari (2006); Projeto Calçada Legal – Prefeitura Municipal de Serra (2008).
Num relance, ocorreu-me num surto de lucidez convocar a sociedade a cuidarmos das nossas calçadas conforme estabelece a norma brasileira e a lei das calçadas, como também lembrar ao poder público que os vossos estabelecimentos deveriam ser um belo exemplo de calçadas inclusivas e as grandes avenidas também.
Gostaria de lembrar, como diria Cazuza, que o tempo não pára e que o mundo e o Brasil exigem condutas que incluam o seu povo no vosso espaço, ou seja, que todos possam participar ativamente das cidades, vivendo sua energia, colaborando para o seu crescimento e sendo responsável pela dinâmica da transformação de um mundo melhor.
Tornar o espaço público e as edificações acessíveis, dentro do conceito do Desenho Universal, é pensar a cidade futura, onde todos têm acesso à educação, esporte, lazer, trabalho e transporte. É promover a cidadania, diminuindo a desigualdade social.
Enfim, é dar o direito a todos de exercer plenamente seus direitos civis, políticos, sociais, culturais e econômicos.
Por fim, resta-me continuar com essa estranha mania de ter fé na vida, como a Maria de Milton Nascimento.
E, mais estranhamente de ter fé nos homens.
Desse modo, Gonzaguinha novamente punciona meu coração a expor a minha forte convicção de que construiremos a manhã desejada e construiremos um Pernambuco que inclui toda a nossa gente: “Eu ponho fé é na fé da moçada Que não foge da fera e enfrenta o leão Eu vou á luta com essa juventude Que não corre da raia a troco de nada Eu vou no bloco dessa mocidade Que não tá na saudade e constrói A manhã desejada” Nota do Blog - Quem é Manuela Dantas?
Manuela Dantas tem 32 anos e trabalha como engenheira civil, formada pela Universidade Federal de Pernambuco.
Em abril do ano passado, ela sofreu um grave acidente de trabalho.
O carro em que viajava para Salgueiro, nas obras da Transnordestina, capotou no interior do Ceará.
Teve politraumas, perfuração do pulmão, hemorragia interna e lesão raquimedular.
Tornou-se cadeirante desde então.
Poderia aposentar-se, pelas leis trabalhistas, mas não aceitou trilhar o caminho mais fácil.
Como nunca desistiu de lutar, agora também guerreia por uma vida com igualdade de condições para todos os deficientes físicos que enfrentam dificuldades diárias nas situações mais cotidianas.
A convite do Blog, Manuela escreve semanalmente, para falar de cidadania e louvar o milagre da vida, conversando conosco.