Por Gustavo Krause, especial para o Blog de Jamildo “A longa luta de um povo por sua moeda” complementa o título do livro de Miriam Leitão, imprescindível para a compreensão do Brasil contemporâneo.

Com efeito, o livro ultrapassa a proposta superficial da crônica; o livro é um estudo penetrante do passado recente e um relato criterioso dos eventos de modo a transmitir uma idéia que se traduz na luta de um povo na construção de sua moeda. É obra historiográfica construída por uma testemunha privilegiada que enxergou os fatos, exercendo o jornalismo sério, crítico e interpretativo.

Entre outras, o trabalho combina a virtude da inspiração com estafante transpiração: varreu fontes primárias, recompôs fatos, eventos notórios e de bastidores, extraídos de protagonistas vivos e bem pensantes.

Todavia, a alma de repórter da autora não abriu mão de demonstrar a centralidade do papel do povo nesta admirável saga assim como fez o leitor sentir a leveza do estilo de quem sabe escrever para consumo do cidadão comum.

No entanto, a maior virtude da obra está nas lições que ficam da leitura atenta.

Antes de tudo – ensina a longa narrativa – é preciso ter idéias e formuladores consistentes, seguindo-se políticas públicas factíveis e eficazes que de nada valerão se não contar com um sólido suporte político.

No caso brasileiro, o diagnóstico da doença crônica da inflação desafiou vários governos.

Tratava-se de um vício.

Uma terrível dependência química movida pela mais poderosa das forças: a inércia.

Neste sentido, a história fará justiça aos economistas e aos gestores que, com competência profissional e espírito público, aprofundaram as bases da racionalidade econômica num país supersticioso, sebastianista, movido por crendices e pajelanças na seara da economia.

A tosca gestão fiscal brasileira começou a mudar com a faxina tecnocrática que pôs fim a conta-movimento, propôs a separação entre o Banco do Brasil e o Banco Central e a unificação dos orçamentos.

Acertadamente, Miriam Leitão identificou naquelas medidas “a pedra fundamental do edifício que levaria a alguma ordem fiscal”.

De outra parte, a perspicácia da autora enxergou nos fracassos retumbantes e nas graves crises por que passou o Brasil saldos residuais que se tornariam instrumentos importantes na luta pela construção da moeda: do fracassado Plano Cruzado, diz ela, “Um novo consumidor, atuante, consciente, disposto a vencer a inflação, nasceu naquele plano fugaz e intenso”; da marca insensata do governo Collor, superlativamente devastadora pelo confisco da poupança, Miriam identifica abertura comercial, a negociação da dívida externa e a privatização como “passos essenciais para a estabilização”.

Na sequência, uma sucessão dramática e traumática que testou a resistência da novel democracia brasileira, passou o pesado leme da Presidência da República a Itamar Franco.

Apesar do otimismo moderado da ressabiada população brasileira, as turbulências continuaram e a persistente inflação derrubou, rapidamente, três ministros da Fazenda, até que entrou em cena Fernando Henrique Cardoso.

Com rigorosa fidelidade aos fatos, a autora confirma as lições do êxito do Plano Real: suporte político às boas idéias, desdobradas em medidas assimiladas pela sociedade e uma capacidade especial do então ministro e futuro presidente em responder, explicar e superar as mais complexas dificuldades que o livro conta com detalhes impressionantes.

Um adendo: em janeiro e fevereiro de 99, início do segundo mandato presidencial de FHC, a crise cambial associada às várias crises internacionais prenunciou a tragédia de mais um plano fracassado que, felizmente, não se concretizou graças à aplicação dos remédios amargos e necessários.

Eis o momento culminante e decisivo da saga: a moeda estável deixa de ser um projeto de governo e se transforma em conquista da sociedade.

A democracia passa a ser fiadora da nova era.

Comprovação: o PT elegeu Lula Presidente da República; o Presidente da República e o seu partido que eram “contra tudo que está aí” usaram sabedoria política ao negar tudo que pregaram quando escreveram a “Carta aos brasileiros”; Lula compreendeu que popularidade rima com estabilidade; blindou as políticas macroeconômicas e não admitiu economistas/militantes no comando da gestão econômica; fundiu sabedoria com esperteza eleitoral ao cunhar a expressão falsa, porém comprada pela grande maioria da opinião pública “Nunca antes na história deste país….” Definitivamente, o Brasil não é para principiantes.

O livro certifica a afirmação e a autora vai mais além: a dedicatória do livro aos filhos demonstra, de um lado, natural e compreensível significação afetiva e, de outro, assume o singular simbolismo histórico de revelar o passado de modo que as atuais e futuras gerações não venham a sofrê-lo como destino.