Eliane Brum, colunista da Revista Época Rodrigo Ciríaco é professor da rede pública de São Paulo.

Não custa lembrar, o estado mais rico do país.

Os pais de Rodrigo, que completa 30 anos em maio, tinham uma lanchonete na Vila Rui Barbosa, na Zona Leste de São Paulo.

Ciríaco cursou a escola pública, parte dela no período da noite para trabalhar durante o dia.

Dos 14 anos em diante foi office-boy, mensageiro, auxiliar de escritório, operador de telemarketing, agitador de festas com videokê, vendedor de livros, estagiário em bibliotecas e educador social de rua.

Contrariou as estatísticas ao conseguir entrar em uma das melhores universidades públicas do país: é formado em História pela Universidade de São Paulo (USP).

Contrariou também as estatísticas familiares, ao se tornar o primeiro a cursar o ensino superior.

Decidiu ser professor da escola pública por acreditar que deveria retribuir o investimento do Estado na sua educação.

E também, mas principalmente, por desejar ser um instrumento de transformação de vidas.

Tem pagado um custo alto por manter esta convicção.

Parte de sua experiência como professor de escola pública foi transformada em literatura no livro de contos Te pego lá fora (Edições Toró). É lá que está a incrível história da aluna que virou placa – tão incrível quanto invisível, como são as placas humanas da cidade, sobre as quais ele nos contará mais adiante.

Educador, escritor, ativista cultural, Ciríaco passou as últimas férias em Berlim, a convite da pesquisadora Ingrid Hapke, da Universidade de Hamburgo, para fazer o lançamento do seu livro em “A Livraria”, casa especializada em literatura luso-afro-brasileira.

Seu livro foi assim apresentado aos alemães: “Escritos de vingança, dor e justiça de um professor que não aceita perder alunos para o tráfico e para a miséria, ver o preconceito camuflado para baixo de carteiras e nem abaixa a cabeça para diretores incompetentes e sistemas educacionais falidos.

Contra tudo isto, usa a sua principal arma: a caneta”.

Neste ano, Ciríaco integrou o grupo de autores da antologia de contos brasileiros, publicada na França e lançada em Paris no último14 de março pela editora Paula Anacaona, com o sugestivo nome de Je suis Favela (Eu sou favela).

Ao voltar ao Brasil e às atividades na Escola Estadual Jornalista Francisco Mesquita, no Jardim Verônia, na região de Ermelino Matarazzo, na Zona Leste da capital paulista, Ciríaco voltou a lutar contra uma combinação sempre muito difícil de lidar: indignação e impotência.

Com base no IDESP (Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo), sua escola foi considerada uma das piores no nono ano do ensino fundamental: é a segunda pior entre as unidades de ensino da capital e a oitava pior entre os 3.695 colégios da rede estadual.

Ciríaco, que realiza várias atividades educacionais extraclasse por sua conta e risco, tampouco foi contemplado no programa de bônus do governo.

Para dar 21 horas-aula semanais, ele ganha em torno de R$ 1.400 brutos.

No dia em que soube que seus esforços não tiveram nenhum reconhecimento, faltou.

Prejudicou apenas os alunos, sempre a parte mais fraca.

Ciríaco admite a falha, mas afirma ter se sentido incapaz de enfrentar a sala de aula.

Estava tomado pela solidão de quem escolhe o caminho mais difícil.

Na semana passada ele escreveu um texto intitulado “Desabafo” em seu blog (www.efeito-colateral.blogspot.com).

Ao ler o relato, decidi procurá-lo para propor uma entrevista.

Eu já o conhecia de encontros esporádicos em saraus de poesias e outros eventos da periferia de São Paulo.

Também já conhecia seu livro.

Ciríaco aceitou, mesmo correndo o risco de sofrer represálias.

Professores podem ter problemas ao falar sobre sua vivência nas escolas paulistas – falar nem sempre é permitido.

Esta é uma conversa sobre educação e escola pública, em minha opinião o assunto mais relevante deste momento histórico vivido pelo Brasil. É também uma conversa sobre ideais e sobre perdas, sobre fraqueza e força, sobre cair e levantar para tentar mais uma vez.

E sobre as contradições vividas por um professor às voltas com sua própria humanidade. É, principalmente, um debate sobre desigualdade e sobre a violência que mata sem sangue.

Esta entrevista já estava em curso quando Wellington Menezes de Oliveira matou 12 crianças numa escola em Realengo, no Rio.

Optamos por não abordar o tema em nossa conversa.

Sem informações suficientes, correríamos o risco de fazer inferências apressadas num momento em que o respeito à complexidade dos fatos é fundamental.

Preferimos manter nosso foco na violência cotidiana e invisível, que, como professor, Rodrigo Ciríaco conhece bem.

A única relação que eu me atreveria a fazer, diante de um caso tão terrível quanto singular como foi o do Realengo, é de que foi na escola que Wellington decidiu cometer seu massacre – assim como é a escola o palco de muitas das infelizmente tradicionais chacinas americanas.

Já li muitas análises sobre o porquê da escolha da escola como lugar de assassinatos em massa.

Mas acho que por aí há mais para pensarmos.

Se você não tem filhos na escola pública, não dê um suspiro aliviado e passe adiante.

O tema desta entrevista tem tudo a ver com você, comigo.

Se você não tem filhos, também tem tudo a ver com você, comigo.

Pensar a escola pública, para além dos muros que para alguns são instransponíveis – e para outros um conforto – é uma tarefa de todos nós.

Pelo menos de todos que têm vergonha.

E que conseguem alcançar, ainda que de longe, a humilhação que um adolescente sente por estar no final do ensino fundamental sem saber ler nem escrever. É desde tipo de crime, comum e jamais punido, que falamos aqui.

Por que você escolheu ser professor da escola pública?

Rodrigo Ciríaco – A minha opção em ser professor de escola pública veio desde o momento em que escolhi ser professor.

Por ter estudado toda a minha vida em uma escola estadual, por ter feito uma universidade pública, acreditava que tinha uma certa “obrigação” de devolver à sociedade tudo o que eu havia recebido, o investimento que havia sido feito em mim.

Este foi um dos motivos.

O outro é por acreditar que a escola pública gratuita é um verdadeiro espaço de transformação possível da sociedade em que vivemos.

Um dos espaços.

Não acontecem mudanças apenas pela escola, como sabemos. É preciso políticas públicas e eficazes de emprego, saúde, segurança, moradia e distribuição de renda.

Deixar toda essa responsabilidade para a escola seria demais.

E o abandono, as políticas públicas ineficazes, sempre me incomodaram, e muito.

Me tornei professor porque tinha vontade de contribuir para que esse quadro fosse alterado.

Como são a sua escola e seus alunos?

Ciríaco – Desde que fui efetivado estou trabalhando na mesma escola.

Hoje, ainda é difícil trabalhar por lá, mas já foi ainda mais.

No começo, nos anos de 2006 e 2007, além dos problemas pedagógicos e administrativos, tínhamos sérios problemas de infra-estrutura.

Das 18 salas de aula, nove delas alagavam, enchiam de água todo início do ano.

Muitas outras tinham infiltrações, buracos na parede e no teto.

Lousas aos pedaços.

Além disso, o sistema de eletricidade era obsoleto – e ainda é.

Vivia sobrecarregado, queimando computadores e lâmpadas.

Houve alguns momentos em que tivemos problemas de curto-circuito.

Não possuíamos uma diversidade de recursos pedagógicos, como sala de informática ou multimídia e laboratório.

E a diretora era extremamente ausente, não cumprindo com suas obrigações profissionais.

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