Giacomo Amadori, da Revista Panorama Se o caso Cesare Battisti tornou-se uma confusão internacional a culpa também é de Pietro Mutti que, há exatos 30 anos, chefiou o comando que libertou o ex-terrorista, hoje disputado entre Itália e Brasil, do presídio de Frosinone, onde cumpria pena de 12 anos por assaltos à mão armada.
Nascido em 1954, Mutti foi companheiro do Battisti no PAC (Proletários Armados para o Comunismo).
Em 1981 Mutti, recém-filiado ao Prima Línea (um grupo terrorista), vivia em um refúgio em Roma a poucos metros da Basílica de San Giovanni.
A grande fuga começou em um domingo de outubro quando, juntamente com Battisti, então com 27 anos e originário de Sermoneta (a 50 Km de Roma), fugiu também um jovem membro da Camorra, a máfia napolitana. “Não nos surpreendemos, o Cesare era e continuou sendo mais um pequeno delinquente do que um extremista político”, diz Mutti.
O grupo cruzou a pé as montanhas e, depois, chegou à Roma de trem.
A partir daqui, Battisti foi para Bolonha, onde se refugiou na casa da sua namorada naquela época, uma funcionária que anteriormente namorou um dos fundadores do PAC.
A mulher dividia o apartamento com outro rapaz.
Os nomes deles nunca foram revelados em nenhum processo, e Mutti também prefere não fazê-los.
De Bolonha, Battisti fugiu para a França, depois para o México, para voltar novamente à França e, finalmente, em 2004, ao Brasil, graças, é o que se diz, aos serviços secretos franceses. “Tenho certeza de que, mesmo se o Brasil tivesse-o extraditado para a Itália, antes que ele pudesse voltar ia escapar novamente e mudar para outro lugar”, declara Mutti, que diz também que “na Itália, de qualquer jeito, ele nunca vai voltar.
Fiquem tranquilos”.
Mas quem está por trás da impunidade do Cesare Battisti? “Eu acho que a França e alguns de seus intelectuais, talvez Carla Bruni, a esposa de Nicolas Sarkozy”, continua o ex-terrorista, “mas eu não lido com a política internacional”.
Mutti hoje vive em Milão, cidade onde ele nasceu e cresceu.
Nos anos 70, como terrorista, ele praticou 45 roubos à mão armada, matou um homem, depois tornou-se colaborador da Justiça e cumpriu oito anos de prisão.
Em 3 de janeiro de 2011, numa noite sem névoa, ele espera o repórter na esquina de uma das ruas da zona leste de Milão.
Entre os dedos tem um cigarro marca Mérit vermelho.
Ele fuma pelo menos 20 cigarros por dia: começa ao amanhecer, quando sobe no ônibus que o leva ao trabalho, na periferia de Milão.
Veste uma calça jeans, uma blusa cinza e um casaco azul, com gola de pele sintética.
Um pequeno chapéu na cabeça, óculos e bigode grisalho. É pequeno e magro.
Ex-operário da Alfa Romeo, em 1977, juntamente com um professor da escola secundária e de um jovem imigrante da Sardenha, foi ele quem fundou o PAC, um grupo que em pouco mais de um ano assumiu a responsabilidade por quatro assassinatos e disparou nas pernas de inúmeras pessoas.
Daquele grupo Battisti também fez parte. “Mas ele se juntou a nós mais para escapar de seus problemas com a lei do que por ideal político.” De fato, com pouco mais de 20 anos, Battisti já tinha sido condenado por vários assaltos, entrou e saiu inúmeras vezes das prisões italianas e, no início de 1978, após o assalto a um correio na região do Lázio, procurou refúgio em Milão onde estava em contato com Arrigo Cavallina, o ideólogo do PAC, conhecido na prisão de Udine.
Em um bar gerenciado por chineses, na frente de duas sambucas e dois Fernet Branca, Mutti comenta os fatos mais recentes do caso Battisti.
O que o senhor acha da decisão do ex-presidente do Brasil, Lula, de não extraditar Battisti para a Itália?
Acho que Battisti tem sido mais inteligente de todos.
Ele não era um personagem do nível do Renato Curcio, nem do Valerio Morucci, que se dissociou do terrorismo para sair “limpo” e que agora é bem sucedido.
Mas Cesare, ao contrário, conseguiu fugir.
Ele enganou todos e agora provavelmente vai curtir sua vida sem nunca ter pago por seus pecados.
O senhor é testemunha ocular do assassinato do marechal da policia penitenciaria Antônio Santoro morto por Battisti Sim, eu o vi com meus olhos matar naquela manhã em Udine (era o 6 de junho de 1978).
Battisti e Enrica Migliorati (uma estudante de 20 anos de idade, membro do PAC) estavam abraçados como dois namorados na frente da casa de Santoro.
Quando o marechal saiu, Battisti disparou por trás dele (três tiros, dois a queima roupa na cabeça, com um revólver Glisenti calibre 10.20).
Eu e outro amigo, Cláudio Lavazza, operário como eu, observamos tudo do carro onde nós os esperávamos.
Eu não me lembro se virei minha cabeça ou se eu observei a cena do espelho retrovisor do nosso Simca 1300.
Mas eu vi que foi ele a disparar.
O senhor tem certeza do que diz?
Eu não tenho nenhuma dúvida.
Foi ele quem disparou, quem escolheu a vítima, juntamente com o Cavallina (ambos tinham conhecido Santoro na prisão), ele quem fez as inspeções prévias, ele quem levou as armas embora no trem depois da emboscada.
Quando fugiram depois de matar a Santoro, o senhor, disfarçado com bigode falso, saudou uma testemunha, levantando o punho fechado.
Vocês estavam agitados?
Eu me lembro da adrenalina para o primeiro assassinato, mas não havia nenhuma alegria ou desespero.
Para nós esta foi uma operação militar.
Você tinha que agir.
Ponto.
O senhor alega que Battisti foi também o autor material do crime do agente Andrea Campagna.
Nos atos processuais da época o senhor disse que o crime foi uma “loucura” de Cesare e do companheiro Giuseppe Memeo.
Confirmo essas palavras.
Foi ele mesmo quem me contou sobre sua participação.
Battisti foi preso por causa destas lembranças do senhor, dessas declarações, palavras de um colaborador da Justiça.
Mas no Brasil Battisti diz que o senhor fala mentiras.
Apesar dele não ter sido condenado apenas por minhas afirmações, de qualquer forma, foi acusado e julgado por magistrados que não acredito terem se enganado devido a meu depoimento.
Em todo caso, eu gostaria de ouvir com meus ouvidos Battisti me chamar de mentiroso.
No exterior Battisti chamou o senhor de “um carrasco, cujo falso testemunho prestado em minha ausência, custou-me uma sentença de prisão perpétua”.
Sobre mim disseram coisas piores.
No entanto, quando eu contei aos juízes a história do PAC, eu acusei a mim mesmo inclusive por atividades para as quais não havia nenhuma evidência contra mim.
Eu apenas disse a verdade sem culpar inocentes.
Os que defendem Battisti descrevem o senhor como uma “figura fantasmagórica” e perguntam: “Quem sabe se ele ainda está vivo, quem sabe onde ele vive e o que ele faz com a nova identidade conferida pela lei dos delatores”.
Posso mostrar-lhe a minha identidade: eu nunca mudei meu nome ou a minha cidade. É o amigo deles que passou a vida inteira fugindo e se escondendo.
Se hoje o senhor encontrasse Battisti o que perguntaria para ele?
Na verdade eu acho que fingiria que não o conheço.
Não tenho mais nada a dizer para ele.
O passado é passado.
Desta história não me interessa mais nada.
Eu fechei minhas contas com o meu passado.
O que o senhor sente em relação a Battisti?
Amar, eu nunca o amei.
Tínhamos temperamentos muito diferentes.
Mas jamais o odiei.
Hoje simplesmente eu não me importo com ele.
O que o senhor pensa ao vê-lo sorrir em fotos e algemado no meio da polícia brasileira?
Eu vejo o Battisti de 30 anos atrás.
Ele sempre foi um cara inteligente, arrogante.
Mas quando eu olho para aquele sorriso, eu acho que ele foi o mais esperto de todos.
Quem se ferrou, me desculpe a vulgaridade, foi a Justiça italiana.
Qual é a primeira coisa que vem à mente, quando o senhor pensar nele?
Seu olhar.
Lembro-me de um jantar em um antigo restaurante em Milão com uma companheira.
Nas paredes pendiam as cabeças de animais empalhados.
A garota olhou para a raposa e disse: “Ele tem os mesmos olhos do Cesare”.
Então Battisti foi o mais esperto.
Mas foi também o mais cruel? Éramos mais ou menos todos iguais.
Pessoas determinadas.
Digamos que ele não era santo, mas em matéria de crueldade não posso dar notas.
Eu também atirei.
E quando decidimos matar alguém ou dar um tiro nas pernas de outro, eu não tinha problemas para dormir a noite.
A diferença é que Battisti nega ter feito isso.
O senhor nunca sentiu remorso?
E como!
Eu matei um policial de segurança por acidente.
Por muitos anos acordava à noite de repente pensando sobre ele e sua família.
Também o pensamento dos companheiros que tinha “traído” pelo meu arrependimento abalou-me por um longo período. Às vezes, estes dois pesadelos se cruzavam.
Mas hoje eu venci essa angústia.
E Battisti?
O senhor acha que as vezes ele é realmente assombrado pelos fantasmas do passado?
Se eu o conheço bem, não.
No máximo se convenceu de ter sido “preso” por um truque.
Se algum dia irá admitir que matou, vai dizer que nós o colocamos no meio, ele pobre menino provinciano, que nós o envolvemos numa história maior que ele.
Ele sempre correu atrás dos seus interesses.
Antes, depois e agora.
Mas não o culpo.
Ele deliberou se salvar e conseguiu.
O senhor tem um filho que está para se tornar um adulto.
Ele conhece o seu passado?
Sim.
Também discutimos sobre o Battisti.
Mas faz tempo.
Hoje não sei como pode me julgar ou o que acha de Cesare.
Em 2009 foi feito um filme sobre Prima Línea, com seus velhos companheiros Susanna Ronconi e Sérgio Segio Eu já ouvi falar, mas não o vi.
A Justiça italiana tem alguma culpa nisso?
De não ter me impedido antes de ajudar Battisti a escapar da prisão de Frosinone.
Sem aquela fuga, teria sido uma história diferente.
OUTRO LADO A advogada Renata Saraiva, da equipe que defende Battisti, minimizou as declarações e diz que Mutti foi beneficiado pela delação premiada contra o italiano. “Na nossa visão isso não tem mais importância.
O julgamento do Cesare Battisti aconteceu à revelia e ele não pôde se defender.
Jamais um juiz perguntou para ele se cometeu um dos assassinatos do qual é acusado”, disse.
Para Saraiva, o caso deve ser analisado no contexto histórico da época: “Toda essa reação só faz confirmar que o presidente Lula estava certo em não entregá-lo”.