Foto: Reprdoução Por Leandro Manzzini, no Jornal do Brasil Acostumada a lidar com crises aéreas, a diretora-presidente da Agência Nacional de Aviação Civil, Solange Vieira, não esperava que uma turbulência se formasse sobre a própria cabeça – literalmente.
O problema começou com um pote do seu creme de cabelo, que guarda no toillet.
Mas as circunstâncias quiseram que o destino deste caso banal ganhasse proporções não esperadas.
Uma faxineira terceirizada foi acusada de usar o produto e demitida, sem direito a defesa.
A ex-empregada acusa uma secretária pessoal de Solange de negligência de informações.
Se Solange esperava um desafio com um apagão aéreo nos aeroportos, a sua maior dor de cabeça vem do setor de limpeza.
A mulher quer processá-la.
Surge então Cláudia Adriana da Silva, 39 anos, auxiliar de serviços gerais, a ex-faxineira contratada da Planalto Service, empresa que presta serviços de limpeza para a Anac.
Cláudia entrou na Anac em 27 de novembro de 2007.
Foi afastada no último dia 8 de dezembro, pelo suposto crime – usar o creme da patroa.
Guardiã das chaves de todas as salas de diretores da agência neste período, a faxineira em operação era como um avião imune ao radar – passeava incólume e quieta pelos corredores, fazia o serviço tão discreta que ninguém notava sua presença. “Nunca tive problema, só este agora”, argumenta Cláudia. “A presidente mandou me excluir, não me ouviu a defesa, pediu a secretária para me demitir.
Eu não pude voltar”.
A história começa há alguns meses, na ocasião da mudança da sede da Anac do Núcleo Bandeirantes – próximo ao Aeroporto JK – para um moderno edifício de 12 andares no Setor de Rádio e TV Sul, onde a agência ocupa oito andares. “Sempre cuidei das coisas da Dra Solange lá na Anac, e um dia, antes da mudança, chamei a sua secretária e mostrei que os cremes estavam vazios, disse para jogar fora e ela disse “não”, para colocar na caixa e que ia levar”, explica a faxineira.
Pois quando Solange, na sede nova, há algumas semanas, deu conta do pote vazio, sobrou para quem?
Naquele dia 8 de dezembro, Cláudia andou chorosa e cabisbaixa por 20 minutos da sede da Anac até a rodoviária no Plano Piloto, e pegou o ônibus com viagem de uma hora para Ceilândia, cidade satélite do Distrito Federal onde mora com filhos.
Solange, à ocasião, entrou no carro executivo com motorista e rumou para o apart hotel onde mora, a 100 metros da sede da Anac.
Ou melhor, do outro lado da rua.
Seja na viagem em dois ônibus de uma hora e vinte para casa, no caso de Cláudia, ou no percurso de três minutos de Solange em carro para o hotel, elas diariamente ficam expostas à luz solar e às mudanças constantes do tempo; e mulheres vaidosas gostam de cuidar dos cabelos, obviamente, como Solange e Cláudia – embora tão diferentes de perfis e de itinerários.
A executiva Solange, com os conhecidos cabelos negros e longos, prova este caso que usa o Kerafix, um creme que custa até R$ 14 nos supermercados mais populares.
A faxineira Cláudia gosta e diz que sempre usou da marca Novex, R$ 17 numa loja de departamentos. “O meu creme é mais caro que o dela!”, detalha Cláudia, revoltada. “Nunca me interessou esse creme, nunca mexi em nada, minha índole é muito boa lá dentro, há pessoas que gostam de mim”, defende-se, e lembra que as diretorias, tanto na antiga como na nova sede, têm câmeras como suas testemunhas.
Aqui um adendo.
Demissões femininas parecem um adereço no currículo profissional de Solange Vieira na sua rota por escalões do governo federal, algumas delas polêmicas.
Quando secretária no Ministério da Previdência, ela demitiu uma gestante.
Tempos depois, o STF reconheceu ser ilegal a dispensa.
Outra reviravolta jurídica deu-se na Justiça Federal para o caso de outra grávida, uma servidora demitida por Solange assim que a diretora desembarcou na Anac - a União indenizou a mulher.
Não parou por aí, outras duas terceirizadas gestantes, ambas de nome Letícia, também foram demitidas pela diretora na agência assim que ela soube da gravidez.
Nos corredores, Solange talvez não saiba, seu apelido - uma menção maldosa - virou Herodes de saia.
Já Cláudia, a faxineira, não apenas perdeu o emprego.
Perdeu a credibilidade.
Olhares esguios das colegas a provocaram naquela tarde em que foi comunicada da demissão.
A mulher passou mal, ficou deprimida, foi ao médico e orientada a tomar rivotril, um calmante.
Não o fez.
Preferiu sofrer calada. “Trabalhei três anos lá, nunca aconteceu nada, e me acusaram de roubo, é muito sério.
Pretendo ir adiante na Justiça e processar a Solange por calúnia e difamação.
A dignidade da gente ninguém paga, posso até ser pobre mas sou honesta”, sentencia a faxineira.
Não bastasse a tragédia da perda do emprego e as acusações, Cláudia rememorou naquela tarde a frágil saúde que a mantém viva.
Um ácido subiu-lhe à garganta, movido pelo nervosismo – ela tem gastrite e toma omeprazol diariamente – e o choro não contido foi pela lembrança do câncer maligno no útero que a persegue há nove anos.
As sessões de quimioterapia passaram, são escassas, mas ela chega a gastar R$ 400 com medicamentos esporádicos não pagos pelo SUS no Hospital de Ceilândia, onde bate ponto como paciente vez ou outra.
Cláudia recebia líquidos R$ 480 como faxineira da Anac, mais R$ 126 de vale-transporte e R$ 273 de vale-alimentação.
Moradora de uma casinha simples com os três filhos – uma de 19, e outros dois de 13 e 7 – é com este valor que ela sustenta o quarteto.
O marido a largou há seis anos e rumou para caminho desconhecido. “Nem peço ajuda, meus filhos não aceitam, não querem que eu me humilhe”, explica a mulher, que complementa a pequena renda com bicos de faxinas em casas de amigos.
Ela passou o Natal com os filhos em casa, numa ceia simples.
Presentes?
Para quem acha que a tragicomédia é algo intrínseco à vida dos pobres, uma prova: ganhou uma conta da CAESB de R$ 750, para pagar este mês, fruto de um vazamento de água no barraco de alvenaria abandonado por sua irmã no quintal apertado de casa.
Engana-se, porém, quem pensa ver em Cláudia uma vingativa.
Apesar de atuar agora em outro órgão do governo pela Planalto Service, ela confessa que o que mais deseja hoje é voltar a trabalhar na Anac para provar a sua inocência.
Cláudia, por ora, confia nos homens da toga.
Ela só quer reparação para fazer a melhor de todas as faxinas de sua vida, limpar o próprio nome.
A Anac não comenta o caso e diz que a responsabilidade de admissões e contratações é exclusiva da Planalto.
Procurada na manhã desta segunda, a Planalto ainda não se pronunciou oficialmente.
Um assessor disse que remanejamentos são comuns neste período do ano.
Com 1,60, quase monossilábica, voz pausada e cabelos crespos castanhos e presos, a mulata Cláudia Adriana, aos 39 anos, diz não saber o que é Kerafix.
Ela nunca entrou num salão de beleza.