Juliana Godoy, Especial para o Jornal do Commercio A fuga dos traficantes da Vila Cruzeiro para o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, a ocupação militar do maior reduto do tráfico carioca, a apreensão de armas de guerra e de toneladas de maconha, cocaína e crack deixaram um rombo nas finanças das organizações criminosas e colocaram a capital fluminense em evidência mundial nos últimos 15 dias.

Em meio a esse cenário, uma questão delicada: dentro do fogo cruzado, onde entra o usuário dessas drogas?

O debate, cada dia mais polêmico, traz à memória o trecho histórico de Tropa de Elite, no qual o soldado Matias, parte da equipe do Capitão Nascimento no Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope), entra em uma passeata pela paz e culpa todos os “maconheiros hipócritas” que estavam ali pela violência dos morros. “A sociedade tem colocado o usuário como culpado pela violência, mas ele é apenas a ponta de um iceberg muito maior.

O que provoca essa situação é mais um interesse de mercado.

Umas drogas são aceitas, outras não”, afirma Paulo Aguiar, psicólogo do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) AD René Ribeiro, em Afogados, Zona Oeste do Recife.

Para Aguiar, o financiamento do tráfico e da indústria farmacêutica são quase iguais.

Quem compra drogas lícitas também estaria pagando essa conta. “É uma lógica parecida.

A indústria farmacêutica está sempre trazendo novos medicamentos e me dizendo que aquilo vai me deixar bem.

O usuário acaba sendo, na verdade, a grande vítima dessa violência. É ele que se arrisca a entrar em uma boca de fumo”, pondera.

Já para o chefe da Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal em Pernambuco, Carlo Marcus Correia, quem usa drogas pode não ser tão vítima assim.

Na opinião dele, ele seria sem dúvidas de um doente, já o problema das drogas é tratado como saúde pública, mas um doente voluntário. “O usuário é o motor do tráfico. É diferente de uma pessoa que descobre estar com um câncer.

Ele procurou aquilo.” Não há como negar que quem usa entorpecentes acaba financiando as organizações criminosas, mas, de acordo com o sociólogo e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) José Augusto Rodrigues, todos, de alguma maneira, acabam contribuindo. “Não é só quem usa cocaína, crack ou maconha que financia a violência.

Todos nós, que tomamos bebidas alcoólicas, que fumamos um cigarro, estamos de certa forma dentro disso”, acredita.

Para dar coro ao sociólogo, o psiquiatra e diretor técnico do Instituto Raid, Evaldo Melo, garante que as duas drogas que mais matam ainda são álcool e tabaco. “Culpar o usuário é uma tentativa de simplificar uma questão muito mais complexa.

Culpá-lo é uma postura equivocada.

Ele é apenas um cidadão que em algum momento da sua vida resolveu experimentar e pode desenvolver uma dependência”, acredita o psiquiatra, divulgando que o número de dependentes químicos fica em torno de 10% a 30% dos que usam a droga. “Ele não é algoz, mas também não é uma vítima”, acrescenta.

Por outro lado, o usuário de drogas não tem muita consciência do seu papel dentro da cadeia do tráfico.

Ao mesmo tempo em que sente uma parcela de culpa, ele não deixa de comprar. “Racionalmente eu sei que quem usa paga o tráfico.

Mas não acho que qualquer violência gerada nas favelas tenha ligação com isso”, afirma um usuário social, que não é dependente, mas diz fumar maconha em uma festa ou outra. “Não tenho contato com os traficantes.

Dou dinheiro e a droga chega a mim”, explica o rapaz de 22 anos, morador do Recife.

Já um ex-usuário de crack, “limpo” há três anos, tem uma visão completamente contrária.

A consciência só chegou quando o vício já estava no limite. “Só percebi o mal que estava fazendo quando decidi parar.

Com toda certeza, o usuário contribui para o que acontece relacionado à violência nas favelas.

Se eu não comprasse, os traficantes não teriam como fazer o dinheiro girar no mercado”, afirma o universitário de 26 anos, também do Recife. “O que precisa para mudar essa realidade é um cuidado maior do Estado com alguns aspectos.

Quando há o vazio estatal, surgem novas opções, como tratamentos religiosos, que ainda deixam muitos aspectos de fora”, acrescenta Evaldo Melo.

Para tentar reduzir os dados, a legislação prevê que os bens dos traficantes sejam revertidos para combate ao tráfico e prevenção e tratamento do vício.

Na semana passada, um leilão em São Paulo arrecadou R$ 1,03 milhão com a venda de 218 itens.