Ricardo Galhardo, do iG Acusado pelo Ministério Público Federal de participar da morte de seis presos políticos e torturar outras 20 pessoas, entre elas a presidenta eleita Dilma Rousseff, o tenente-coronel reformado do Exército Maurício Lopes Lima descreve a violência nos porões da ditadura como algo “corriqueiro”.

Na mesma semana em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou que o torturador de sua sucessora hoje deve estar se torturando, a reportagem do iG encontrou o militar levando uma vida calma na praia das Astúrias, no Guarujá.

Hoje aposentado, ele fala tranquilamente sobre os acontecimentos relatados em 39 documentos que serviram de base para a ação civil pública ajuizada na 4ª Vara Cível contra ele.

Questionado sobre o uso da tortura nos interrogatórios, comentou: “Era a coisa mais corriqueira que tinha”, afirmou.

Embora negue ter torturado Dilma, ele admite que teve contato com a presidenta eleita.

Diz que na época não podia sequer imaginar que a veria na Presidência. “Se soubesse naquela época que ela seria presidenta teria pedido: ‘Anota meu nome aí.

Eu sou bonzinho’”, afirma.

A ação aberta contra Lima e os demais acusados – dois ex-militares e um ex-policial civil - se refere ao período entre 1969 e 1970, quando Lima e outros três acusados integraram a equipe da Operação Bandeirante e do DOI-Codi, ambos protagonistas da repressão política durante a ditadura militar (1964-1985).

Entre os documentos, está um depoimento de Dilma à Justiça Militar, em 1970, no qual ela pede a impugnação de Lima como testemunha de acusação, alegando que o então capitão do Exército era torturador e, portanto, não poderia testemunhar. “Pelos nomes conhece apenas a testemunha Maurício Lopes Lima, sendo que não pode ser considerada a testemunha como tal, visto que ele foi um dos torturadores da Operação Bandeirante", diz o depoimento de Dilma.

Na época com 22 anos, a hoje presidenta eleita foi presa por integrar a organização de esquerda VAR-Palmares.

No mesmo depoimento Dilma acusa dois homens da equipe de Lima de ameaçá-la de novas torturas quando ela já havia sido transferida para o presídio Tiradentes.

Ela teria questionado se eles tinham autorização judicial para estarem ali e recebido a seguinte resposta: “Você vai ver o que é juiz lá na Operação Bandeirante”.

Outros depoimentos deixam mais evidente a ação do militar, como o do frade dominicano Tito de Alencar Lima, o Frei Tito, descreve em detalhes como foi colocado no pau-de-arara e torturado por uma equipe de seis homens liderados por Lima. “O capitão Maurício veio buscar-me em companhia de dois policiais e disse-me: ‘Você agora vai conhecer a sucursal do inferno’”, diz um trecho do depoimento, no qual ele diz ter recebido choques elétricos e “telefones” (tapas na orelha), entre outras agressões.

O então capitão do Exército é acusado também de ter participado da morte de Vírgilio Gomes da Silva, o “Jonas” da ALN, outra organização de esquerda que defendia a luta armada.

Líder do sequestro do embaixador dos EUA Charles Elbrick, Virgílio foi assassinado no DOI-Codi, conforme admitiu oficialmente o Exército em 2009.

Lima nega todas as acusações.

Leia abaixo trechos da entrevista concedida por Lima ao iG: iG - Como era chegar em casa e pensar que uma moça como a Dilma, de vinte e poucos anos, havia sido torturada?

Lima - Nunca comentei isso com ninguém, mas desenvolvi um processo interessante.

Eu não voltava mais para casa, pois achava que podia morrer a qualquer momento.

Me isolei dos amigos e das pessoas que gostava.

O quanto mais pudesse ficar longe melhor.

Era uma fuga. iG - O senhor fugia do que?

Lima - De uma realidade.

Eu sabia que ia morrer.

Minha mulher estudava história na USP.

Ela soube por terceiros que eu estava no DOI-Codi.

As colegas dela todas presas. iG - Então não era a tortura que o incomodava?

Lima - É como um curso na selva.

No primeiro dia você vê cobras em todo canto.

No terceiro dia você toma cuidado.

Depois do décimo dia passa um cobra na sua frente e você chuta. É adaptação. iG - Se tornou uma coisa banal?

Lima - Sim. iG - E hoje em dia o que o senhor pensa daquilo?

Lima - Penso que só é torturado quem quer.

Agi certo.

Arrisquei minha vida.

Não tive medo.

Não tremi, não.

E não torturei ninguém.

Pertenci a uma organização triste, sim.

O DOI-Codi, a Operação Bandeirante eram grupos tristes. iG - O senhor está pesquisando no projeto Brasil Nunca Mais para preparar sua defesa?

Lima - Sim.

Primeiro porque não sei quem falou.

Uns me citam, outros “ouvi dizer”. iG - O MPF cita sua participação em torturas contra 16 pessoas.

Lima - É.

Outro que me deixa fulo da vida é o Diógenes Câmara Arruda (ex-dirigente do PCB preso na mesma época que Dilma).

Ele faz a minha ligação como torturador dele e o CCC (Comando de Caça aos Comunistas, grupo de extrema direita que atuou nas décadas de 60 e 70).

Eu tinha uma bronca desgraçada do CCC.

Me referia a eles como “aqueles moleques chutadores de porta de garagem”. É o que eles eram.

Nunca tive nada com o CCC. iG - O senhor também é acusado de participar da morte do Virgílio Gomes da Silva (o “Jonas” da ALN, morto no DOI-Codi em 29 de setembro de 1969).

Lima - Me acusam de ter matado o Virgílio e de ter torturado o filhinho dele (então com quatro meses de idade).

Eu não estava lá e demonstro para quem quiser ver (se levanta e pega um livro do Exército com os registros de todas suas mudanças e transferência ao longo da carreira).

Isso são minhas folhas de alterações militares.

Pode olhar aí.

Fui transferido para a Operação Bandeirante no dia 3 de outubro.

O Virgílio foi morto no dia 29 de setembro. iG - Não havia entre os militares a questão moral de que a tortura desrespeita os direitos humanos?

Lima - A tortura diz respeito a direitos humanos e o terrorismo também. iG - Um erro justifica o outro?

Lima - Estão ligados.

Tortura no Brasil era a coisa mais corriqueira que tinha.

Toda delegacia tinha seu pau-de-arara.

Dizer que não houve tortura é mentira, mas dizer que todo delegado torturava também é mentira.

Dependia da índole.

As acusações não podem ser jogadas ao léu.

Têm que ser específicas.

Eu sei quem torturava e não era só no DOI-Codi, era no Dops também.

Mas eu saber não quer dizer que eu possa impedir e nem que eu torturasse também.

A tortura é válida para trocar tempo por ação. iG - Quem torturava?

Lima - O maior de todos eles já morreu e não dá para falar dos mortos. iG - Alguma vez o senhor contestou a prática de tortura no DOI-Codi?

Lima - Não porque existia um responsável maior, o comandante do DOI-Codi.

Eu fiz a minha parte.

Se eu fosse mandado torturar, não torturaria.

Outros não.

O Fleury (delegado Sérgio Paranhos Fleury), por exemplo, até dava um sorriso.